Morador de rua.


...Enquanto resisto, penso e vou recolhendo em inúmeras fontes o peso sincero da revolta eminente.
Perco a hora de acender minha luta que desemboca num abismo intransponível do tempo. Um tempo desmedido pela falta de ponteiros num relógio parado no meio da vida. Dentro de mim, eu sei, há uma reserva colossal de tempo.
Mas nada posso fazer. Nem tenho vontade. Não há alternativa a não ser essa mordaça que reprime minha chance de versejar.Tudo o que almejo se entrega sem preço, pousando a esmo sobre a calçada que sempre leva a algum lugar que não me pertence. Cubro-me com manchetes antigas, de antigos problemas. Ateio fogo nessa mentira de promessas constantes.
A chuva não me incomoda. Atormenta-me mais o vazio. As ruas estão cheias de um vazio insuportável, onde ninguém tem ouvidos para escutar esse discurso.Meu dia, fruto de uma noite impossível, estraga o dia de muitos. Os mesmos que também se acovardam e não sabem povoar seus próprios sentidos, num total divórcio de sentimentos. Que carimbam os dedos esquecendo seus nomes, que na verdade, também não tem a mínima importância que esboçam ter.
No decorrer do dia, caminho lentamente sob minha mente e pareço um pouco mais absoluto em face de tanta riqueza alheia depositada no lixo.Isso restaura alguma coisa em mim. Afasta a minha fome e faz entender que nem todos se calam por vontade própria. As palavras é que às vezes precisam brigar por um espaço com o silêncio que é imposto e, na maioria das vezes, perde a luta.
Meu nome e minha cara estão expostos. Mas somente o que exigiram de mim coordena a impressão que meu nome ainda traz. A voz cansada de uma miséria que não é minha se mistura com o ranger de cães famintos pela lei que não é e nunca foi cumprida. Atravesso a rua perdido, como aquele que ama ou sorri.
Ninguém percebe a minha história que aos poucos também vai se desprendendo de mim.
Absorvo os nutrientes do meu sonho impossível e desesperadamente chego a lamber o prato sujo dessa tal realidade.
Sento-me ao chão, pois não suporto mais o peso da minha própria cabeça.
Nisso, o homem passa absorto, preocupado somente com o capital depositado no banco, como se isto, fosse capaz de substituir qualquer argumento. O jovem desperdiça a saúde e exala seu vazio interior. Uma velha passa e se benze, deixando a impressão de que estou mais velho que ela.
Uma criança inocente me joga uma moeda que quase cai num bueiro. Isto torna essa moeda a mais valiosa de todas.
Relembro então minha infância distante. Onde a vida era um brinquedo e por isso tinha valor.
Desfaço-me da minha identidade, fujo do meu submundo. Tento esquecer de mim mesmo me lançando num buraco profundo que, derepente, possa chegar a outro lugar.
Quem sabe lá eu recrio minha vida, minha poesia perdida de amigos distantes, meu poema esquecido no meio da bíblia surrada e rasgada pelo pecado do mundo do qual teimo em fazer parte.
E se houver mais tempo, durmo de verdade, amparado pelas asas de um anjo e registro a minha vida na incansável busca de tornar-me novamente aquilo que alguns pensam que eu fui.
Mas por enquanto, preciso encontrar algo que mereça o valor da minha prata, para forrar o pensamento com um ouro que só a minha vontade pode garimpar. Depois, quem sabe, avistar uma ponte que somente meus olhos são capazes de construir e novamente esquecer tudo diante de um sonho.
Na minha vida, tudo só depende de mim mesmo e das esmolas falsas que raramente eu ganho nas esquinas dessa cidade empobrecida, que assim como eu, segue resignada com o rumo de seu próprio destino.

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