Fragmentos de saudades


Chega um tempo em que as reminiscências do pensamento parecem brincar com a gente principalmente quando se caminha devagar e sozinho pela manhã gelada, onde o frio cortante proporciona um diálogo incessante com a gente mesmo.
E naquela época parecia que o frio realmente fazia efeito e todo mundo entoava com mais iniciativa os preparativos para a festa junina que literalmente fechava a Rua Floriano Peixoto. As festas antes eram exclusivamente em junho. Hoje esticaram para o mês sete.
Durante uma semana de expectativas era formada uma cooperativa para arrecadar as coisas que iam compor toda as guloseimas que mexiam com pensamentos da criançada.
Minha mãe, sentada à máquina de costura, ia remendando as nossas roupas com velhos retalhos de sua vasta sabedoria pra gente dançar a quadrilha. Papai seria o responsável por desenhar no nosso rosto o bigode, a barba e a costeleta usando carvão da churrasqueira.
A Conceição e a Rosaninha já tinham começado o ensaio há duas semanas atrás, e mesmo assim algumas crianças mais distraídas não haviam aprendido todos os passos.
Cada casa colaborava de uma forma. Pipoca, batata doce, pinhão. Tachos de arroz doce, doce de abóbora e canjica. Mas era na casa da Dona Geralda, mãe da Conceição, que o tesouro era escondido. O cachorro quente da Dona Geralda tirava a concentração da criançada e dos adultos. Nossa corrida por aquele ouro induzia-nos a ter que dançar direitinho na quadrilha sem fazer bagunça, caso contrário, nada de cachorro quente.
As bandeirinhas coloriam o céu e trançavam a rua parecendo unir ainda mais casa por casa, deixando o instante mais aconchegante. A fogueira não só aquecia as pessoas como também virava a cada ano uma marca registrada daquele encontro. A “cadeia” feita de bambu às vezes ficava lotada. Sempre tinha um adulto metido a xerife que gostava de prender e soltar. Na Loja do Seu Arnaldo e no Bar Ganha Pouco tinham se esgotado o estoque de bombinhas. Nas cozinhas das casas, também sumiam misteriosamente os pacotes de “Bom-Bril” da dispensa. Eles seriam acesos e girados com força proporcionando um espetáculo de fagulhas e luzes. Era um tanto perigoso, mas inesquecível.
O “burrico” que o fotógrafo Zinho usava em seu foto pra tirar monóculos da romeirada no domingo trazia a noiva da nossa quadrilha num momento de “glamour” caipira. Talvez o meu grande trauma naquelas festas de antigamente foi nunca ter sido o noivo das quadrilhas juninas. Mas acho que eu não tinha mesmo idade para casar.
O som do estouro da pipoca no fogo contracenava com o “busca-pé” “zunindo” atrás da criançada. São minhas mais belas e aquecidas reminiscências.
Parece que essa tradição teve início com o meu avô Zé Pedro bem antigamente, onde ele fazia uma fogueira enorme em frente a minha casa para assar batata doce e distribuía pipoca pra criançada na noite de São João, a mais fria do ano.
Bom, mas isso já é uma outra história. Fragmentos de uma outra saudade...

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