Extinta.


Aquela noite mal dormida já era um resquício da relação conturbada que viviam.
Ela ficou quase a noite toda revirando ele de um lado para outro para ver se parava de roncar.
Por conta disso ele acordou esquisito. Uma dor de cabeça insistente que logo naquela hora da manhã ia depositando em seu pensamento que o dia ia ser difícil.
Era costume levar o celular para o banho para escutar as primeiras “baboseiras” jornalísticas do dia no rádio e também para não perder a hora.
A primeira manchete foi categórica e lhe chamou a atenção: “as mulheres iriam se extinguir do planeta daqui a 800 anos segundo um estudo de uma universidade americana”. Aquilo em sua cabeça cheia de xampu caiu como uma bomba. Afinal, ele não estava agüentando mais sua esposa. Sentia que seu amor, aquele amor de antes, se transformara em ódio. Mesmo porque, um vizinho lhe chamara a atenção sobre o fato de sua mulher estar se encontrando as escondidas com um cara lá do bairro.
Ela estava desgastada com a relação. Sempre havia algo a reclamar dele. Estava mesmo era suportando aquela convivência sem razão nenhuma e sem saber por quê. Mas pra ele nada denunciava uma razão para ser traído.
Enrolado na toalha, ele procurava no quarto um par de meias no mesmo instante em que, de frente à imagem de um santo, rezava como fazia em todas as manhãs.
Ainda despertando da noite mal dormida, a esposa ainda pôde escutar parte de sua oração matinal que dizia:
“... E eu espero meu santo, não precisar ter que viver ainda mais uns 800 anos pra ver isso”...
Da cama ela simplesmente resmungou presa como sempre num tom tipicamente irônico:
“Por mim você poderia morrer amanhã que não ia fazer nenhuma falta”...
Ele engoliu a seco aquela provocação, mas quis explicar para a madame porque disse aquilo.
“É que ouvi logo cedo no rádio que os estudos de uma universidade dos Estados Unidos chegaram a conclusão de que as mulheres desaparecerão da face da terra em 800 anos”...
“É meu querido, do jeito que você anda bebendo e fumando, não terá a felicidade de ver isso. Você não vive nem mais dez anos deste jeito”.
O silêncio dele cortava a manhã de forma viril. Ela até estranhou isso já que uma ferrenha discussão se sucedia quase sempre.
Antes de sair, ele ainda se voltou a ela e disse num tom meio assustador:
“Outra hora a gente vê quem vai viver mais que o outro”...
Depois de muito tempo, naquela manhã, ela sentiu certo medo...
Ele embarcara numa plataforma da rodoviária em fuga apenas com uma insatisfação lhe corroendo por dentro.
Era o fato de não poder ter ficado pra ver a cara da mulher ao encontrar o bilhete que deixara ao lado do corpo do amante dela, deflagrado com duas balas de calibre 38 no peito. O bilhete, em tom solene dizia:
“Nem que durem 800 anos, eu juro que ainda volto pra acertar a sua parte. A sua extinção, querida, já está sendo providenciada”...


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