A última dose.
Foi num tempo em que as ruas eram de pedras, e entre elas, a gente podia ver nascer uma certa ramagem. As menos pisadas vinham emolduradas pelo limo de um tempo. Um tanto desertas. Mas os bares de então estavam repletos.
Já naquela época ele caminhava com o pensamento febril. Chumbo de velhos pensamentos tidos reacionários. Para as autoridades, pensamentos subversivos e perigosos para o “sistema”. Mesmo assim ele caminhava e parava geralmente num mesmo lugar. Uma casa transformada em bar onde o que mais chamava a atenção era a música proibida. Verdadeiras “bolas entre as pernas” daqueles militares velhos, cegos pelo brilho de suas medalhas no peito. Ladrões fardados que cometiam o pior dos furtos: o da voz.
Em segredo, ele também roubara de uma biblioteca um livro esquecido e poeirento que se transformara em sua bíblia profana, onde seu cristo, tinha sido pregado de braços cruzados entre a inspiração que o libertaria do pecado de não saber versejar.
Com sua dose, ali na mesa, sentia que seu espaço para ascender e acender a política daquele tempo cinzento estava por acabar a condená-lo ao sepulcro do esquecimento. “Forças ocultas” tentavam banir aquela escrita e esconder a revolta. “Os poderosos” confiscavam todos os meios possíveis e imprimiam apenas o exaustivo e invencível “não”. A força de um pisão que marcava profundamente.
Guardanapos, tidos como verdadeiros dossiês, ficariam por algum tempo esquecidos. O silêncio e a angústia seguiriam assim, como combustíveis para a explosão inevitável. Literatura rebento.
Nas mesas, os mais variados assuntos sucumbiam diante daquela eminente queda de braço. “O sistema vai ruir, não tem mais sentido algum continuar”.
A vida então não se resumiu mesmo em festivais.
Subversivos amigos ficariam órfãos de um comunismo que perderia o sentido. Mas foi um orgasmo ver aqueles velhos militares cheirando a zinabre se transformarem em órfãos da ditadura antes.
O garçon do lugar, socialista e corinthiano, agradecia quando zombavam dizendo que o “fim da fila” do seu time foi tramado pelos militares nos subterrâneos da história justamente para acalmar a massa que estava a ponto de explodir.
“ Foi mesmo a única coisa boa que ‘eles’ fizeram”, dizia o garçon.
Entre outras lorotas, viajando ao som do vinil, retrucou uma última dose já dobrando os guardanapos entre as páginas roubadas. Foi quando ouviu a voz simpática e diplomática do dono do bar, escondido entre tantos discos, dizer:
“O Cabide já foi embora. Não tem garçon pra te servir”. O bar estava fechando. Levantou-se então sem mais delongas tirando do bolso alguns Cruzeiros. Colocou sua cadeira cordialmente sobre a mesa obedecendo inconsciente uma vassoura que já empurrava as bitas de cigarro pelo chão de ladrilhos.
A última dose ficou pra ser servida depois e regar outra fossa, pois o Cabide tinha ido embora antes da hora e sem avisar ninguém...
Ricardo Ramos (Cabide).
*27/04/1953
+03/01/2010
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