Lembranças da Rua Pe. Gebardo...
Lá, onde meu avô existia, era longe. Um incontestável lugar.
Talvez somente os que moraram antigamente no alto da Rua Pe. Gebardo se lembram dele.
Era onde girassóis, perfilados na circunferência do astro rei, guardavam a entrada da casa e compensavam o cansaço da longa rua que nos levava até lá. Alameda de árvores imaginárias nos trazendo sombras reais. Ipês de cores múltiplas cortando os céus.
Meu avô, marcado pelas lutas da vida, ainda reencontrava alguma força e sempre me ajudava a subir nas árvores frutíferas do quintal. Eram as árvores da minha vida.
Braço forte assim como seu destino. Coisas que me faziam acreditar ainda mais no futuro.
Cabelos todos eles brancos. Uma forma cã que transmitia um ar soberano misturado ao cheiro do cigarro de palha.
Andar vagaroso e descalço. Vitorioso momento do encontro com o chão.
Da memória, meu velho avô não saiu. Como muitas outras coisas que ficaram “perambulando” na lembrança:
-O cheiro do café passado na hora. Plantado, colhido e torrado ali. O pão aquecido entre a fumaça do fogão de lenha. O chão batido, o pilão esperando pela quaresma, a bica dágua incessante assim como a esperança. A preocupação com a terra, enraizada pela plantação. Uma terra avermelhada que lembrava o coração. O amor velho ensinando o amar sempre.
Junto, mil amarras que me detinham livremente:
-Minha avó lenhando o último graveto do inverno que viria rigoroso. Uma avó de mãos calejadas, salpicando o chão com milhos disputados grão a grão pelas galinhas que, num futuro não muito distante, seria o banquete de um dia.
Uma mãe jovem e um pai vivo, fotografando o eterno lirismo das tardes que lentamente iam caindo.
Um eu menino, apostando corrida com pássaros em liberdade.
Feliz, achando bonito o quadro da santíssima trindade empoeirando com o tempo e resistindo na parede caiada por um branco indissolúvel.
Registros de vozes que nunca perderam o timbre na memória.
Pelo quintal, o velho e pesado machado ia rachando a lenha em partes necessárias.
O vento apagava a vela no mesmo instante em que atiçava o fogo, movendo um resto de água abandonada. Frutas doces ornamentando a mesa coberta com uma toalha bordada ganhada de presente num natal do passado. Vasos ignorando flores já murchas, e mesmo assim, belas.
A cacimba escura que clareava em água nas folhagens da “horta”. Sonhos fazendo escapar da gaiola o canto do Sabiá Laranjeira.
Janelas que mostravam a basílica e o horizonte ao longe, com seus tons e cores ajustados secretamente por Deus.
Tramelas sem tanto uso, protegendo as portas da casa.
Uma paz invisível aos olhos. Sensível ao coração.
O entardecer trazendo a certeza da vida numa incomunicável existência que aflorava meu pequeno mundo.
Um avô deveras forte. Amparado nas páginas da bíblia surrada que ensinavam a viver e a rezar e que teve suas palavras renovadas em força quando foi encadernada por meu pai na editora.
Formas simples e belas de uma mesmice e seu encanto. Caráter tido como digitais, transmitido a cada um de seus muitos filhos. Vasta dinastia.
Meu avô também ficou num único retrato em preto e branco. Eternizado forte. Aprisionado pelo tempo.
Seus ensinamentos foram seguindo em frente sem se importar com esse tempo, mostrando ao meu inconsciente o significado e o peso dessa palavra insistente chamada saudade...
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