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Mostrando postagens de 2013

A assunção de Nhá Risoleta

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O dia despertava na cantoria dos galos nos terreiros dali. A Rua do Pinhão tinha um brilho indefinido. Beirava uma transcendência bem peculiar.  O vira latas entregou-se ao latido rouco descortinando uma presença pelo lado de dentro da cerca de bambu: -Bom dia Nhá Risoleta! Pés descalços, num vitorioso encontro com o chão, vinha ela: -Acordou cedo hoje neguinho... -É que eu vim cortá uns bambu pra módi a gente fazê um encanamento e puxá água do brejo do cemitério. -Água de difunto? Deus me livre Ambrósio... Mas ocê pode ficá a vontade no quintar viu nêgo. E cuidado com essa foice enferrujada viu... -A Nhá Risoleta num tá ino carregá água  não? Faz dia que eu tô vêno sua lata ai fora encostada no tempo... -Num tô ino não meu fio. Eu num tô me sentindo bem não sabe. -E hoje tem tanta gente na paricida. A Nhá ia podê ganhá bastante jutório dus romêro. -Pois é... Pra semana, se eu tive mió e Nossa Senhora da paricida permiti, eu vorto na praça. Cê qué tomá uma

Minha vasta memória

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Minha memória anda falhando.  A pedido da patroa, toda vez que vou ao supermercado, levo uma listinha de compras para não me esquecer dos itens a comprar. Sábado passado foi assim: elaborei uma lista de algumas coisas, sempre com a patroa perguntando "colocou isso?", "colocou aquilo?". Não esqueci de nada. O fato é que eu tive que ficar ligando pra ela toda hora, pois me esqueci de levar a bendita lista de compras comigo...

Nos passos da eternidade

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Já faz algum tempo que a onda é caminhar. Caminhar, caminhar. Daqui pra lá, de lá pra cá... Um vai-e-vem constante em busca da saúde, do físico perfeito. Todo mundo calçando o par de tênis, o moletom. Mulheres amarrando camisas no bumbum aguçando a curiosidade da rapaziada. Na chuva, no sol, de dia, de noite. Nas tardes enfim... Caminhar, caminhar, caminhar... Num tempo muito remoto, eu aderi esta onda de caminhar impulsionado pela minha namorada (hoje esposa) que vinha lá do Portal das Colinas, onde trabalhava como babá, para me encontrar ali por perto da garagem da Pássaro Marrom. Eu todo esbaforido de cansaço vindo lá da Santa Rita e ela completamente bela a quilômetros de disposição de mim. Certa vez, ao passar em frente ao Bar do Zé Maria, um amigo meu que ali estava tomando sua cerveja diária e fumando seu cigarrinho, partiu pra desforra ao me ver passar: -Meu querido, porque tanta pressa? Deixa de ser bobo... Caminhar pra quê???? Na verdade, quem estava com pres

Retratos de nós mesmos.

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Por Célio Luis Batista Leite (Celinho) O cinema italiano está para o mundo da sétima arte assim com o futebol brasileiro está para o mundo da bola. Giuseppe Tornatore não chega a ser um Pelé, mas pode ser considerado um Garrincha. No filme “O Homem das Estrelas” (1995), este fantástico diretor conta a história de um charlatão que percorre a Sicília, nos anos 40, filmando e retratando pessoas para se tornarem estrelas de cinema, cobrando 1.500 liras por isso. Impressionante ver como rostos simples se transformam diante de câmeras: verdadeiras estrelas daquele momento. Quando assisti ao filme pela primeira vez, foi impossível não me lembrar das cenas que eu via, quando criança, na Praça Nossa Senhora Aparecida. Os “retratistas”, postados em frente à Matriz Basílica, com suas “caixas mágicas”, registrando nas chapas o rosto dos romeiros que vinham rezar aos pés de Nossa Senhora. As fotografias, muitas vezes, retratavam gerações. Eram vários componentes de uma mesma família que, às

Vômito contemporâneo

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Logo de manhã, lá por perto da Praça Kennedy, adentra ao ônibus um sujeito mal trapilho, carregando algumas sacolas plásticas surradas, com um cheiro forte de gente em sua natural essência, contando algumas míseras moedas. Fixou-se de pé, ao meu lado, segurando numa daquelas alças de segurança, onde aos poucos, começou a se dependurar, balançando aos movimentos do ônibus. Foi quando eu comecei a reparar em seu semblante: barba por fazer, olhos vermelhos. Um hálito forte de bebida que sorrateiramente ia inundando as narinas e o ambiente em si. De repente, o sujeito começou a amarelar. Os lábios arroxeados denunciavam seu desconforto. Puxava o ar com força, balançando freneticamente. Foi quando eu achei que ele ia vomitar. Em alguns segundos, minha intuição consolidou-se. E começou a soltar tudo aquilo que lhe acometia: palavras de ordens um pouco desordenadas como “passe livre”, “fora Dilma”, “congresso de merda”, “abaixo a corrupção” e outras coisas mais. O silêncio de

Papéis

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Gari da prefeitura, saiu candidato naquelas eleições mais para pegar alguns meses de licença. Na campanha eleitoral, fez o inverso do que sempre fazia: -Sujou toda a cidade com seus "santinhos" de campanha. Com poucos votos, voltou ao trabalho com muita sujeira para limpar...

Sapeca

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" Menino, vai na venda me buscar um picolé "... Calor demais, chega o menino depois de meia hora apenas com o palito nas mãos e diz: " Foi o sol. Ele derreteu todo o sorvete "... Suas bochechas rosadas disfarçavam o morango de sua boca...

Segredos

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Chicotadas estalavam... Ouvia-se uma voz a gritar: Seu burro, deixa de moleza...Me carregue! O carroceiro também tinha seus fetiches secretos na noite...

Vida longa ao Rei!

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Falar alguma coisa sobre meu camarada Toninho Macedo é fácil. A gente se falou pouco quando ele descobrira sua doença. Nessas poucas vezes, tentou me explicar os meandros daquilo que lhe acometia. Eu, por ordem prática, sempre burlava aquela seriedade. Era assim que se descortinava um belo sorriso. Nossa amizade sempre foi ampla. Ele sempre dizia que os “ diferenciados ” se atraíam com facilidade. Modesto. Falar sobre o maestro Toninho Macedo é remeter a memória para um tempo de glórias. Acordes absolutos em inúmeras fanfarras pelo Vale do Paraíba. O desafio maior era formar, além de músicos de ouvidos apurados, homens de bem. A empreita surtiu efeito de forma surpreendente. Nesse enfoque de sua vida, ser instrutor da fanfarra da cidade do Potim há alguns anos trás talvez tivesse sido o auge dessa missão numa época de muita marginalização na cidade, com jovens perdidos e crianças se perdendo. E ele conseguiu contrapor aqueles destinos que iam fadar muitos ao descontrole s

Rainha do lar

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E ela está sempre ali:   Entre as névoas da manhã, varrendo as folhas do tempo.   Sustentando o mundo com o bailar da sua vassoura. Minha mãe iluminando outra vez o dia...

Mistérios...

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Não tenho o hábito de olhar pra trás ou ao lado quando alguém assovia, fica buzinando ou fica fazendo “psiu” . Se for comigo, tem que chamar pelo nome. Mas foi inevitável não procurar de onde tinha vindo um sonoro “psiu” agora há pouco em frente ao portão dos Cemitério dos Passos. Fiquei curioso por saber quem era, pois o coveiro sabe bem como eu me chamo...  

Olhos vermelhos...

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Estava eu na fila ao guichê da Marrom esperando para colocar “créditos” no novo cartão de passagens da linha Guará/Aparecida quando me chega ao lado um andarilho me pedindo umas moedas. Com certa pressa naquela fila que não andava, lhe disse que não tinha moedas. Diante da afirmação, o pobre homem saiu resmungando e parou por perto querendo me intimidar. Num instante depois, enfiei a mão no meu bolso e tirei meu colírio afim de dar uma gota em cada um dos olhos. Foi quando o cidadão veio de novo ao meu encontro e, talvez querendo mesmo tirar qualquer coisa deste pobre escritor, me pediu sem pestanejar algumas gotas do meu colírio. A fila toda se voltou pra mim na expectativa da minha resposta que foi categórica: -Meu colírio? Meu colírio não... Sei lá o que  você andou olhando por aí mano... E seguiu resignado o pobre homem que não tirava aqueles olhos vermelhos de mim...

Ali...

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Escrevo como se estivesse sempre ali, no quintal da casa. Debaixo das árvores que meu avô plantara. Raso de lágrimas escrevo como se ali o tempo não passasse. Como se o horizonte, em cores ajustadas secretamente por Deus, acendesse as estrelas. Como se o vento soprasse lentamente zunindo, dando voz a ausência. Depois, os pés descalços, num glorioso encontro com o chão, me levando ao alcance de antigas lembranças: a avó regando avencas, despetalando rosas brancas que podiam curar o olhar. Redefinia-me minha avó num sorriso. O gostinho de barro na água lavando o âmago de compor. Escrevo a partir dali, de onde nunca saí. De onde cada palavra morde o silêncio querendo espantar a saudade feito um cão vira lata...

Citações (1)

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E eu tinha de correr... Antes que a vassoura/vento arrancasse você/folha de mim...

Claves

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Não teve  dó  de  si  mesmo, o dia. Lá  longe, o  sol,  por detrás da noite, ardia numa silenciosa e escura melodia...

Gozar-te

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Friccionou cada palavra encontrada no pensamento, levado pela inspiração da mente. Foi rápido e o prazer de juntar versos ejaculou um poema, escorrendo poesia...

Nada cai do céu...

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Tinha um velho sonho: ser um grande escritor. Renomado, famoso. Para tanto, tentou de tudo. Até que fez um pacto com o diabo. Sua carreira literária deslanchou. Ficou conhecido no mundo todo até que um dia, já nos arautos da fama e um tanto arrogante, decidiu escrever uma biografia de Deus. Foi a derrocada. O inferno cortou-lhe o patrocínio...

Aos olhos do poeta

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Se não me falha a memória, o ano era 1996. Tínhamos o costume de toda sexta-feira à tarde, ou sábado na hora do almoço, de juntar os companheiros que trabalhavam comigo na ARBAL, ou fábrica do Seu Célio, para cairmos na cantoria. O destino era algum boteco de Aparecida. Lá instalados na advertência sempre atenta da liberdade de um copo, o Nivaldo infestava nossa alegria com muita MPB, tirando do violão a fina interpretação que somente ele era capaz. Numa sexta-feira, lá no Bar do Márcio que fica na Rua Pe. Gebardo, Nivaldo teve um momento mais que inspirado quando começou a tocar “Tarde em Itapoã”, do Vinícius. A viagem sobre aquele momento arrastou todos os pensamentos possíveis dali, regados a uma cerveja bem gelada, cartão de visita do saudoso amigo Márcio. Ao final da canção, o Donão me vem com esta pérola: -Nivaldo, tenho um amigo que o irmão dele mora na Bahia. Ele disse que esteve nesta praia de Itapoã certa vez e não viu nada de mais. Uma praia qualque

Os Papas do meu tempo

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                                            Foi como me disse o Sr. Edson Reis da Ótica Macedo antes do fim do Conclave: -Antigamente, Papa era uma pessoa tão distante... De fato, pessoas como minha mãe, hoje com 75 anos, me disseram que antigamente a figura de um Papa era uma coisa inatingível aos olhos. No Brasil, desmistificando essa “lonjura”, o Papa João Paulo II aproximou os fiéis do mundo todo por se tratar de uma pessoa carismática. Suas peregrinações pelo mundo ratificaram a presença do Papa físico entre o povo, dando outra dinâmica na fé. Ainda me recordo de certa “correria e comentários” de meus pais e avós sobre a morte de um papa que foi pontífice por apenas um mês. João Paulo I, o “Papa sorriso” foi encontrado morto em seus aposentos levantando teses de conspiração. Logo, eu percebia outra correria nas imediações da Rádio Aparecida... Era Julho de 1980 e pude ver em meio à multidão o “João de Deus” passando pela Avenida Getúlio Vargas em Aparecida. Rosto

Líder extinto

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A surpresa causada pela renúncia veio acompanha de algumas incertezas, embora todos jurassem que era um episódio contornável na história. Perdiam-se muitos fiéis ( ou seriam infiéis? ). Escândalos de pedofilia. Uma crise rondava as portas daquele ministério. Reunidos os cardeais, e após alguns dias, o conclave decidiu com certa unanimidade. A fumaça branca saída da chaminé anunciava um novo líder agora negro pela primeira vez na história. Era um período de transição extraordinária que representava o deslocamento do poder. Mazelas espirituais perdiam a nitidez. Preconceitos humanos pareciam varridos. Um momento único e histórico. O líder vinha agora nascido num país miserável da África onde a fome e moléstias sacrificavam muitos inocentes. A AIDS era a que mais matava. Dizimava adultos e crianças que eram muitas. Num decreto considerado insano por seus seguidores, tomou uma decisão espantosa e inédita: ia transferir a sede do ministério para seu país de origem por dois m

Catador de palavras

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Estava sentindo-se fraco. Saúde frágil. O velho escritor estava por semanas reunindo coisas pra jogar fora. Escritos há muito guardados. Inéditos amarelados desde o tempo em que colaborava com um jornal local. Castrou-se com o tempo. Isolou-se profundamente em meio a ruína que se tornou sua casa. Pensou em queimar tudo. Tinha medo das labaredas que poderiam formar. Apenas amassou-os rasgando cada folha mandando tudo para o lixo. Tornou-se egoísta e decidiu que não deveria mais passar adiante aquela sua literatura que a muitos encantou. Seria mais poético que o esquecimento tomasse conta de tudo aquilo que pudesse lembrá-lo. Cada vírgula. Passados alguns dias então se deu a morte do velho escritor, com poucas pessoas acompanhando o féretro. Um ostracismo querido e desenhado de forma triste. Semanas antes, um catador de materiais recicláveis havia encontrado no lixo, jogado pelo escritor, coisas interessantes. As folhas rasgadas inclusive. Muitas delas. Ele há algum tem

O amor no caminho das trevas

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Ele era tido como um “bicho grilo”. Figura conhecida. Perambulava pelo centro da cidade recolhendo bitas de cigarros e revirando as latas de lixo. Sempre que passava em frente a uma casa de decorações, entrava devagar e disparava sempre a mesma pergunta ao vendedor: -O senhor por acaso tem lanterna?. Era notório de que ele não podia comprar uma. Ele perguntava por aquelas lanternas antigas, daquelas que tinham um lugar especifico dentro para se colocar uma vela. Uma espécie de candeeiro. A resposta dada pelo vendedor era sempre a mesma: Um não categórico, o qual ele ouvia em silêncio e se retirava sem mais delongas. Era quase todo dia assim. Deu-se um motivo que foi capaz de fazer aquele vendedor virar gerente da loja de decorações. Em seu lugar foi contratada uma moça que logo no seu primeiro dia foi abordada pelo “louco” lhe desferindo a antiga pergunta: -A senhora por acaso vende lanterna? Tal qual a inocência da jovem vendedora, a resposta veio naturalmente na

Estêvão

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Menino cabeça de vento: Só pensa em soltar pipa. Cambaleando de sono, vai tropeçar em sonhos. Se enroscar nas linhas/nuvens dessa liberdade colorida...

Desencontros

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Maurílio Américo de Carvalho, meu amigo Maurilhão, faleceu na noite de um domingo de carnaval, a uns dez anos atrás, de uma maneira improvável como já aconteceu com todos os boêmios que conheci. Foi alguns dias após o seu aniversário. M ais improvável porém que a épica ressaca daquela segunda-feira de folia, onde minha percepção da realidade não queria acreditar no acontecido. Aquela “dor de cabeça” homérica confundiu meu pensamento. Só passei a acreditar mesmo na ”ida” do Maurílio quando minha Mãe, pela terceira vez naquela tarde, me confirmava seriamente seu desterro. Desci a rua desorientado. Ele encerrava uma amizade ampla, dessas de ir “até o arroz secar”. Incógnito, porém engraçado. Cheio de confusões, mas de um coração imenso. Parceiro de vida, de trabalho, de balcão e de madrugadas. Quantas infindáveis vezes bilhetinhos meus foram capazes de arrumar uma paquera pra ele na noite. Pensando bem agora, deveria ser por isso que ele sempre andava com uma caneta no bolso.