Caminhos da posteridade.


Estava já há algum tempo em minha mochila um exemplar deste jornal, onde em janeiro passado, escrevi sobre os 100 anos do Corínthians driblando a condição.
A madrugada do pronto socorro onde trabalho é digna de documentário, principalmente quando aportam derepente por lá alguns andarilhos.
Lá pelas tantas, num estagio vazio da madrugada, entra pela porta automática do lugar um desses mendigos. Me disse que só ia usar o banheiro e que já sairia.
Mas na metade do caminho ele voltou e me preguntou se eu não tinha nenhuma folha de jornal para ceder. Num instante rápido, abri minha mochila e lhe entrguei o exemplar do Comunicação Regional que ali estava dizendo: “Só tenho este. Aproveita e leia na página dois um texto que eu escrevi”...
“Ah ,tu é escritor?”, perguntou-me ele.
“Quem me dera... Eu só tento imprimir um pouco dessa realidade que vivo para merecer a parte da posteridade que me cabe depois”.
Sem muitas delongas ele seguiu seu destino até o banheiro tentando afastar das minhas narinas seu cheiro sem culpa. Dez minutos depois, quebrado o silêncio pelo som da descarga, ele chegou até a mim e disse: “Eu não sou Corinthiano não, mas me enquadro perfeitamente nessa sua crônica. Vou tentando driblar minha condição já faz algum tempo. Mas às vezes me sinto fraco. Parece que meu destino me leva à um exílio sem precedentes. Mesmo assim, em outros tempos da minha cabeça, tento me agarrar à vida. Por pior que possa parecer ela ainda me pertence. Hoje meu dia foi diferente e isso me coloca esperançoso. Pra terminar a madrugada, li sua crônica e me enchi de razões para continuar. Em outros tempos, talvez você me responderia que não tinha nenhuma folha de jornal, mas que lá no banheiro teria papel higiênico. Não que muitos jornalecos por aí não mereçam de nós apenas as defecações do dia a dia, pois só imprimem o que se paga. O côcô ia até ilustrar com mais nitidez as vilezas das páginas. Mas por que talvez eu não poderia aparentar à você o meu interesse em ler. E você me pareceu um pouco poeta também, sabia?”...
Já se preparando para seu desterro dali, ele ainda falou em tom de desânimo:
“Eu também por muitas vezes escrevo poesia. Mas elas se perdem pelos caminhos que ando. Muitas delas eu nem chego a escrever pois não encontro uma caneta ou lápis para colocá-las num papel. E a inspiração é isso. Ela nos coloca fora por alguns instantes deste mundo real que a gente se encontra e nasce uma poesia, um poema ou crônica. Se cochilar, já era. Fica tudo fazendo parte do nosso esquecimento. Daí, como você bem disse, a gente acaba não fazendo nada pra merecer um pouquinho que seja dessa posteridade. Eu posso levar seu jornal?”
“Claro que pode”, respondi.
“Fica com Deus então. Obrigado por elevar minha crença em dias melhores”...
Certas pessoas são obrigadas a se tornarem cronistas, escritores ou poetas pelas circunstâncias e muitas vezes nem percebem. Metem as mãos na realidade que vivem não tanto para celebrá-la, mas para desmontá-la.
É por isso que não devemos ter tanta fé na vida real. Ela é apenas um cenário. O que se esconde dentro das pessoas é o que realmente vale.
Eu nunca mais vi o camarada andarilho nas imediações do pronto socorro. Inconsciente, talvez ele nem percebeu. Mas alguma coisa dele ainda ficou por ali, escrevendo com minha despretensiosa ajuda, uma parcela daquela posteridade em questão.

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