08 de janeiro: Dia do fotógrafo.
Foi tirando a poeira das minhas máquinas fotográficas que me remeti ao que considero “passado impresso”. Por entre as lentes objetivas que não se manifestam mais me perdi nesse incomensurável assunto que se tornou a fotografia com o passar do tempo.
Cresci em meio a este oficio que fez com que meu saudoso pai Joaquim Dias ganhasse a vida. De lá pra cá, sinto que a fotografia não mudou, exceto quando abrangemos seus aspectos técnicos.
Fotografia não é apenas imagem. Ela é o tempo detido, é a memória. É a evidência da luz que Incidiu-se sobre um objeto específico, num lugar específico, num momento específico. Se por um lado isto soa como uma limitação, por outro é o próprio mistério da fotografia.
Aquilo que vemos numa foto aconteceu. Às vezes de uma maneira que não sabemos como ou por que, pois a fotografia não explica. Mas aqueles objetos e pessoas que se gravaram sobre o filme e hoje são imagens, ontem existiram. É isso que estimula nossa imaginação. É uma luminosa compreensão da passagem do tempo que nos leva a perceber que a fotografia, enquanto sistema de representação e linguagem oferece múltiplas possibilidades de reconhecimento e interpretação. Aquilo que a fotografia reproduz até o infinito só aconteceu uma vez. Ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.
Constatamos e entendemos que toda referência fotográfica, apoiada em outras fontes de documentação, contém preciosas informações e, cada vez mais, assume relevante papel na análise do contexto da história contemporânea. Mas, considerado causadora do maior impacto da história, a fotografia vai virando lenda, num complexo entendimento da arte.
O fotógrafo lambe-lambe surgiu por um gesto bastante incomum no exercício da profissão devido ao teste que se fazia para verificar de que lado estava a emulsão de uma chapa, filme ou papel sensível. Para evitar o erro de colocar a chapa com a emulsão voltada para o fundo do chassi o que deixaria fora do plano focal e, portanto com falta de nitidez e ao contrário, costumava-se, não só o fotógrafo lambe-lambe, mas como qualquer outro fotógrafo que utilizava câmeras de grande formato, molhar com saliva a ponta do indicador e do polegar e fazer pressão com esses dois dedos sobre a superfície do material sensível num dos cantos para evitar manchas. O lado em que estivesse com a emulsão seria identificado ao produzir uma leve impressão de “colagem” no dedo. Alguns historiadores explicam que a origem do termo “lambe-lambe” é controvertida. Segundo alguns se lambia a placa de vidro para saber qual era o lado da emulsão o que explicaria o nome. Acredita-se mais na idéia de que foi o gesto, mágico e furtivo do fotógrafo lambe-lambe, que para identificar a emulsão impressionava tanto os populares que nada conheciam sobre a arte da luz e sombra. Antes, qualquer lambe-lambe era capaz de dizer sem hesitar a marca de sua lente, que era o grande trunfo do negócio. Mas nem os velhos imigrantes tinham noção definida sobre a procedência da máquina. Montada e remontada infinitas vezes na base da intuição por esses profissionais ambulantes que atuavam numa sagração do improviso, a máquina do lambe-lambe foi um produto artesanal e caseiro, feito com sobras recicladas de um primeiro tempo da indústria.
A intenção deste texto, que tal qual um iceberg, é apenas a valorização de um momento especial da produção fotográfica que existiu. Intuitivos e sem compromissos com a história, os fotógrafos de antigamente construíram um pedaço da nossa memória visual e talvez um dos mais verdadeiros e prazerosos trabalhos, produzindo imagens com uma velha câmera de fole com objetiva de pouca luminosidade, sem dispor de fotômetro nem filtros. O que importava era a luz intensa. Sua presença na Praça era referência do sol, índice que garantia a alegria de todos os freqüentadores durante o dia. Diziam os mais antigos fotógrafos que “para ser um bom retratista era preciso ficar de olho nas nuvens”. Admirando hoje uma velha máquina tripé de caixote da minha coleção, vejo que aquele foi um período de ouro da atividade profissional do fotógrafo lambe-lambe, que se instalou nas praças e jardins públicos do Brasil nos idos de 1915 e durante mais de cinco décadas retratou as mais variadas situações e os mais variados tipos humanos. O poder de trazer para a superfície do cotidiano uma maneira mais fácil na construção da memória coletiva foi dando lugar ao descontrole das imagens. Uma câmera digital de última geração é capaz de armazenar em seu cartão de memória dez mil fotos numa resolução baixa. Parece brincadeira. A estranha necessidade que a humanidade sempre teve em deixar seus rastros para o futuro virou coisa de criança.
Certa vez, num fim de semana de movimento em Aparecida, meu amigo Júlio Passarinho estava tomando sua cerveja no Bar do Orlandinho quando uma família de romeiros que estava em uma outra mesa do bar o abordou perguntando se ele não poderia bater uma fotografia de todos eles juntos para levar como recordação. Prontamente nosso amigo pegou a câmera, pediu para que todos se aproximassem mais uns dos outros e pediu atenção:
-Olha o sorriso turma! Atenção!
Entre os romeiros alguém gritou ainda:
-Olha o passarinho!
O Júlio baixou a máquina e instantaneamente perguntou pra romeirada:
-Ué, vocês me conhecem de onde???
Ninguém entendeu nada.
A busca pela construção da memória coletiva tem também seus fatos pitorescos e folclóricos. É isso que faz ainda da fotografia uma arte nobre, mesmo ás vezes empoeirada por sua própria história.
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