Tomando posse.

No vizinho município de Silveiras, havia uma pequena fazenda denominada Laje, pertencente a um senhor muito simples chamado José Pedro Camargo, que ali vivia com sua esposa. Meu pai foi seu quarto filho, nascido em 1931.
Um ano depois a fazenda de meu avô foi invadida por soldados da revolução de 32. Naquela região os confrontos tinham sido rigorosos onde morreram muitos soldados. Ninguém podia sair de casa, pois era arriscado morrer baleado por um fuzil.
Em julho de 1932 terminou a guerra. Mas, em pouco tempo, os confrontos renderam muitos prejuízos aos fazendeiros da região por onde passaram as forças revolucionárias. Meu avô perdeu muitas criações entre gado, cavalos e burros que nunca mais foram recuperadas. Levaram ainda uns três anos para que tudo voltasse ao normal por aquelas bandas.
Meus avós começaram a trabalhar firme no campo e tinham tempo ainda para fazer farinha de mandioca pra vender. Meu avô plantava, mas a terra não era boa. Foi no ano de 1943 que ele decidiu sair de lá. Já meio cansado da lida nos campos do “Bairro dos Macacos” em Silveiras, resolveu então desbravar essas terras d’Aparecida do Norte onde os milagres de uma Santa Aparecida já movimentavam milhares de romeiros.
Dois de meus tios já tinham vindo a fim de comprar uma casa para que meus avós pudessem então se estabelecer. O lugar é onde eu moro até hoje.
A chácara ficava ao lado do cemitério Santa Rita, pouco abaixo das terras do seu Joaquim Raé, beirando o caminho que mais tarde foi desapropriado para se traçar a Via Dutra. Caminho também que levava para as “bandas” da Rua do Padeiro, hoje Rua Padre Gebardo. Mais abaixo, o terreno comprado fazia divisa ainda com as terras do seu Joaquim Cordeiro.
O êxodo, a transição do campo para a cidade não foi fácil. Meu avô nunca tinha feito outra coisa na vida que não fosse cuidar de criação, lavrar a terra e plantar. A mudança foi feita em lombo de burro. Não havia na época outro jeito.
Foi chegando á terra da Santa Aparecida que sua emoção transbordou. Biografias e histórias contadas por membros da minha família relataram aquela emoção ao longo dos anos.
Aos pés da antiga ladeira já era possível enxergar as duas torres. Sinais de um elo sagrado que unia o chão ao céu. Minha avó apreciava tudo com as mãos trêmulas que se faziam fortes nas contas do rosário carregado há anos pela vida. Postas, as mesmas mãos cerraram-se de um amor infinito, capazes de se difundirem em gestos supremos de emoção.
O cansaço escorria o suor vindo de longe, mas a subida íngreme da velha rua jamais conseguiu desmanchar a devoção por estar ali e começar uma nova vida.
De frente para a igreja, o coração calejado pela lida, desesperadamente acelerou a alma límpida. Os sentimentos se perderam em meio às pessoas sem deixar o pensamento confundir a direção. Neste exato instante, os olhos de meu avô timidamente choraram, parecendo não acreditar. Quase não teve forças para subir os degraus. Num transpassar de luzes, o silêncio ecoou abrangendo todo o antigo espaço que exalava uma essência incomum. Velas acendiam sombras insistentes, esculpindo o belo. Flores humildes transcendiam na brancura mármore do altar.
O vai e vem das pessoas apenas coordenava os sentidos dos dois que permaneciam postados em preces diante da luminosidade da imagem trazida pelo rio.
Os degraus, gastos pelo galgar dos homens e do tempo, contrastavam com a fé incansável que não se desgastou nunca.
Aqui, pra sobreviver, começou a vender salgados numa cesta. Minha vó virava a noite fazendo pastéis para meu avô vender na praça da matriz, lugar disputado palmo a palmo pelos mais diversos tipos de ambulantes já naquela época. Com o tempo, ele foi formando a freguesia necessária para ganhar seu dinheiro.
Mas antes disso tudo, tomar posse do lugar comprado foi difícil. Antigamente não existiam muros. Eram cercas que separavam e indicavam os limites dos terrenos.
Paralelo à casa de meu avô, morava numa “tapera” uma senhora viúva que na verdade se instalou no local sem nenhuma escritura que legalizasse sua morada ali. Uma espécie de “uso capião” do lugar comprado pelo meu avô. Com a movimentação já de alguns dias, a viúva se trancou dentro de casa e não colocava a “cara” pra fora.
Já sabendo de toda a estória que envolvia a viúva, meu avô foi ter com a mulher uma conversa informal a fim de convencê-la a sair do local, pois precisava ampliar a casa, já que trouxera de Silveiras sua mãe, minha bisavó, Chica Dias. Homem justo que era, meu avô até ofereceu alguns “meréis” para que ela se arranjasse em outro canto. Mas ele não teve êxito na conversa, pois a viúva veio “com quatro pedras nas mãos” e cabou esculachando meu avô. Seria preciso muita sabedoria para resolver aquilo.
Na mesma noite, meu avô combinou com minha avó que fizesse amizade com a viúva, pois ele havia tido uma idéia pra resolver a situação. Não tardou e com o passar dos dias minha vó, com sua tranqüilidade, já estava chamando a mulher de “comadre”. E assim seguiu...
Numa tarde, falando num tom de desabafo, ela contou para a viúva que seu marido parecia que estava ficando doido da cabeça e não havia jeito de tratar aquela loucura:
-Tem noites que ele quebra tudo dentro de casa e parece possuído por coisa de outro mundo. É preciso meus “fios” amarrar o coitado e a gente puxar um “terço” inteiro pra poder “expulsar” o coisa ruim dele. Isso não é vida não cumadre...
A viúva foi ficando com o semblante amedrontado devido à história contada por minha avó que disse ainda:
-Eu tenho medo “cumadre” que ele pule essa cerca e faça alguma besteira. Lá em “Sirvêra” aconteceu isso com um vizinho nosso. Foi um “Deus nos acuda”. Meus “fios” tiveram que esconder o facão que tinha lá em casa pro Zé não fazer uma loucura...
À noite, depois de quase um dia inteiro vendendo seus pasteis na praça da matriz, meu avô estava afoito. Dando início ao plano, minha vó já havia separado alguns pratos e xícaras velhas que ele começou a jogar no quintal fazendo o maior barulho. Berrando como um doido ele dizia:
-Eu vou pular muié, eu vou pular! É hoje que eu mato um! Cadê o facão?...
Minha vó, fingindo desespero, implorava:
-Num faz isso Zé, pelo amor de Deus! De novo não!
A “loucura” do meu avô durou uns quinze minutos. Uma eternidade para a viúva ao lado.
No outro dia bem cedo, apossada de umas trouxas de roupas e alguns badulaques, a viúva saiu de casa numa só disparada e nunca mais apareceu. Sumiu do mapa.
Meu avô pôde então tomar posse de verdade daquele lugar comprado ás custas de muito suor e sacrifício lá em Silveiras. Aumentou um cômodo e fez um quarto pra minha bisavó dona Chica Dias que viveu alguns poucos anos por ali.
Para minha avó Cesarina restaram apenas alguns vasos de flores e avencas que a viúva não pôde levar embora e a simples missão de ter que varrer os cacos dos pratos quebrados pelo “maluco” do meu avô Zé Pedro naquela noite. Depois de tudo resolvido, no outro dia, meu avô, com humildade, trancado numa oração, foi então agradecer à Santa Aparecida. Era um domingo de muito movimento na cidade. Ele deixou sua cesta de salgados por um instante esquecida e se ajoelhou. Um gesto digno de uma alma contente de alguém que superou os percalços da vida. Benzeu-se como de costume e foi vender sua mercadoria. Ao redor, no largo da matriz, velhos fotógrafos, já naquela época, lambiam o papel registrando o acaso. O tempo se encarregou de deixar tudo imortal na sua primeira fotografia tirada nas escadarias da entrada do templo. Sua imagem eternizada, amarelecida ficou. Seu retrato e sua luta desde os campos de Silveiras vêm dando forças aos seus descendentes pra se tomar posse quem sabe do futuro um dia...

1º lugar no Concurso de Contos da Biblioteca Municipal de Aparecida 2009

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