O próximo


Estava de passagem por ali.
Notara que a cidade estava deserta como as velhas cidades fantasmas do West Americano. Não conseguia visualizar uma pobre alma.
Estacionou seu velho "1113" em frente a única pensão que encontrara.
Entrou sorrateiro e pôde perceber um senhor sentado na cadeira de balanço enrolado num cobertor. Era pleno verão e a necessidade daquilo não era normalmente visto.
Ao se aproximar notou um velho cansado, apanhado por tremores. Era um rosto febril, de olheiras profundas. Olhos rubros que denunciavam uma moléstia.
-Preciso de um pouso meu senhor para esta noite...
A voz embargada quase imperceptível do dono da pensão iludiu seus ouvidos num “sim” remoto.
Curioso por toda aquela debandada humana, quis saber o que houve com a cidade por estar tão deserta daquela maneira.
-É uma moléstia meu filho. Estão todos doentes e trancados em casa...
O primeiro a notar tal depressão física foi o prefeito, que depois de uma viagem de praxe, retornou assim. Depois, como era de se esperar, o médico daqui também entrou em declínio. Veja só que ironia! Assim a doença misteriosa se alastrou por todos os cantos.
O padre se achou imune pelo poder de Deus, mas a pia onde fica a água benta parada por falta de fiéis, fez a doença tomar conte dele. Foi assim que percebeu ser mesmo um pobre mortal como nós. Em poucos dias o monsenhor tombou.
O agente funerário não pôde receber seus defuntos, que misteriosamente, aumentaram. Ele também contraiu a moléstia. Depois foi o alfaiate, o barbeiro, as mulheres de vida fácil. Ninguém mais ficou elegante, barbeados ou tiveram prazer por essas semanas.
O policial libertou o ladrão, minimizado de forças para manter o cárcere. O ladrão por sua vez, pagou caro sua liberdade. Era agora uma sombra doentia que se arrastava sem mais nenhuma razão para fugir.
O mecânico adoeceu ao passo de poucos dias. O ferreiro caiu cambaleante diante de seu ofício. A professora coitada, tenta em vão buscar nos livros a cura. Mas suas mãos trêmulas mal conseguem virar outra página. Seus alunos, crianças inocentes, sofrem ainda mais com tudo. Não brincam mais pelas calçadas que agora estão cheias de mato, pois o trabalhador responsável por esta empreita também agoniza enfermo. Nem mesmo o banqueiro escapou. Seu dinheiro embolora sem utilidade, pois ele não consegue dar um passo. Mas mesmo se pudesse, o açougueiro, o jornaleiro, o frentista e o padeiro se trancam em seus casebres, travando essa engrenagem.
E pra sacramentar a nossa defasada estadia neste mundo, o coveiro está num estado deplorável em sua cama. Há medo até de morrer e ficar ilustrando o lado mórbido da vida com a exposição de nossos vermes ao léu do tempo.
Apenas lamentou por tudo e por todos e depois de pegar a chave de seu quarto só pensava mesmo em tomar uma ducha e repousar seu corpo.
Apressado, foi incapaz de escutar as últimas palavras do moribundo que ficou ali esquecido na penumbra:
“Não tenha pressa meu filho, você ainda será o próximo”.
Foi no exato instante em que tentava afastar do ouvido o zunido impertinente de um mosquito que voava de um lado para outro por ali...

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