Catador de palavras


Estava sentindo-se fraco. Saúde frágil. O velho escritor estava por semanas reunindo coisas pra jogar fora. Escritos há muito guardados. Inéditos amarelados desde o tempo em que colaborava com um jornal local.
Castrou-se com o tempo. Isolou-se profundamente em meio a ruína que se tornou sua casa.
Pensou em queimar tudo. Tinha medo das labaredas que poderiam formar.
Apenas amassou-os rasgando cada folha mandando tudo para o lixo.
Tornou-se egoísta e decidiu que não deveria mais passar adiante aquela sua literatura que a muitos encantou. Seria mais poético que o esquecimento tomasse conta de tudo aquilo que pudesse lembrá-lo. Cada vírgula.
Passados alguns dias então se deu a morte do velho escritor, com poucas pessoas acompanhando o féretro. Um ostracismo querido e desenhado de forma triste.
Semanas antes, um catador de materiais recicláveis havia encontrado no lixo, jogado pelo escritor, coisas interessantes. As folhas rasgadas inclusive. Muitas delas.
Ele há algum tempo estava passando sempre por ali. No lixo do velho sempre tinha algo interessante para se aproveitar: livros, discos, fotografias, revistas e jornais antigos. Coisas que ele recolhia cheio de um êxtase incomum. Levava tudo pra casa como quem carrega um tesouro e ficava até alta madrugada lendo seus achados.
Certa noite, depois de um dia todo andando pelas ruas, ele começou a juntar os papéis rasgados. Teve um trabalho intenso para desamassar, separar e até limpar alguns deles. Depois começou a colar parte por parte daquelas folhas batidas à máquina. A cada frase formada ele diferenciava seu encanto. Reescrevia sua dinâmica e sentia o pensamento voar. Um prodígio para seu mal maior que era a solidão iluminada apenas por uma velha lamparina.
Andando todo santo dia pela cidade, era detentor de muitas amizades. Uma delas, vista como a mais importante, era o dono de um pequeno jornal que lutava arduamente o embate da mídia impressa contra a tecnologia. E resistia.
Ali ele juntava restos de papéis aparados pelas prensas e guilhotinas da humilde tipografia.
Foi na manhã de um dia que ele tomou coragem e depois de passar uma noite toda copiando, ele entregou sem pretensões suas releituras ao dono do jornal como se fossem de sua própria autoria. O redator ficou vislumbrado com o que leu. Como poderia um mero catador de lixo reciclável ter tanta sensibilidade e sabedoria com as palavras, pensou.
O suposto “escritor” mastigava o silêncio com medo de criar uma ruptura naquela surpresa do redator. Não encontrou forma de desmentir aquilo que assumiu.
Isso foi capaz de fazer surgir um convite inesperado do jornalista: o da publicação daquele texto.
Máquinas trabalhando a todo vapor pela noite e... Extra! Foi o maior sucesso. Todo mundo comentava que o jornal enfim publicara algo interessante de se ler. Um texto extraordinário há tempos não visto. Palavras que aprisionavam.
O catador então passou a ser respeitado por tanto. Assumiu a alcunha de escritor e cada vez trazia uma crônica inédita, de fácil entendimento para deleite dos leitores.
O jornal então pareceu emergir de um profundo abismo. Acolheu inúmeros anúncios em suas páginas. Anúncios que disputavam um lugar especial que era ao lado da coluna do nosso novo “escritor”. O mais caro dos espaços.
Um belo dia, ele percebeu que os escritos recolhidos no lixo do velho escritor falecido estavam se esgotando. Começando a chegar ao fim. Ele já celebrava aquela fama roubada, o que fez com que entrasse em desespero. Mudara um pouco de vida tornando-se o colaborador mais importante do jornal, cujo redator chefe tinha começado até a pagar alguns trocados à ele em troca dos textos “produzidos”.
Ele não encontrava saída.
Por muita coincidência, a crônica que havia ficado por último foi justamente a que o escritor falecido relatava o seu fim. O eminente encontro com a morte que se aproximava.
Publicado o texto, todos ficaram perplexos. Não se sabia o teor verdadeiro daquelas palavras nem a veracidade dos fatos narrados. Era algo que beirava o real e ao mesmo tempo transcendia o surreal. As edições esgotaram e criaram uma enorme expectativa para a próxima publicação.
Depois de tudo isso, o catador de lixo sentiu certo alívio.
De madrugada, juntou o que pôde carregar. Isso não antes de queimar tudo o que plagiou durante um bom tempo realizando inconsciente o último pedido do escritor morto tempos antes: o do esquecimento.
À surdina, foi como se também se arrastasse póstumo pela madrugada afora.
Foi voltar a ser ele mesmo depois muito tempo num outro lugarejo longe, bem longe dali...

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