A assunção de Nhá Risoleta
A Rua do Pinhão tinha um
brilho indefinido. Beirava uma transcendência bem peculiar.
O vira latas entregou-se ao latido rouco
descortinando uma presença pelo lado de dentro da cerca de bambu:
-Bom
dia Nhá Risoleta!
Pés descalços, num
vitorioso encontro com o chão, vinha ela:
-Acordou
cedo hoje neguinho...
-É
que eu vim cortá uns bambu pra módi a gente fazê um encanamento e puxá água do
brejo do cemitério.
-Água
de difunto? Deus me livre Ambrósio... Mas ocê pode ficá a vontade no quintar
viu nêgo. E cuidado com essa foice enferrujada viu...
-A
Nhá Risoleta num tá ino carregá água
não? Faz dia que eu tô vêno sua lata ai fora encostada no tempo...
-Num
tô ino não meu fio. Eu num tô me sentindo bem não sabe.
-E
hoje tem tanta gente na paricida. A Nhá ia podê ganhá bastante jutório dus romêro.
-Pois
é... Pra semana, se eu tive mió e Nossa Senhora da paricida permiti, eu vorto
na praça. Cê qué tomá uma caneca de café?
-Carece
não Nhá Risoleta... carece não.
Manquitolando, ela vinha
estender seus trapos para quarar no varal. Trazia nas mãos uma folha de jornal
que veio voando com o vento e parou ali no terreiro há uns dias passados.
-Neguinho,
ocê que estudou as linguage dos purtugueis branco, conta uma coisa pra Nhá
Risoleta. O que que tá escrivinhado nessa fôia de jorná aqui?
-Dexa
eu vê Nhá...
-Óia
Nhá, parece que tá dizêno aqui que a senhora Princesa Isabé vem rezá nos pé da
Santa pra agradece duma graça arcançada. É o que tá falâno aqui...
-E
pra quando que vai di sê isso nêgo?
-Prêce
começo di méis di dezembro agora Nhá...
O tempo na Rua do Pinhão
parecia parado. Inquieta porém ficou Nhá Risoleta assoprando uma lenha no fogão
pra já ir adiantando o cozimento do ensopado na panela de ferro que ela mal
conseguia tirar do fogo.
Mas aquela notícia não lhe
saía da cabeça: “a princesa aos pés da Santa”...
Aquela folha de jornal,
editada em Santo Antonio de Guaratinguetá, já era antiga.
Mal sabiam os dois que
dali há dois dias contados a princesa Isabel estava para chegar na sede da
fazenda do Morro Vermelho, da Família Nabo Freire e seguir com sua comitiva
real para a Capela d’Aparecida.
Alheia a tudo isso, Nhá
Risoleta foi até sua Santa no canto da tapera. Acendeu uma vela aos pés da
imagem e pôs-se a rezar:
“Minha
Santa da paricida, minhas pernas já não se aguenta mais di subi a vossa colina.
Me discurpe. Por esses dias venho me sentindo ânsim, cansada da lida.
As
mão já num mi obedece mais. Só o sinar da cruis, minha Santa, que eu num deixo
nunca di fazê.
Por
esse meis di dezembro, vin di ficá sabêno que vem lhe agraciá em visita a
senhora princesa dona Isabé.
Se
eu pudesse minha Santa, eu subia até sua capela e fazia di questã banhá seus pé
ca água da minha lata e refrescá a vinda da realeza pressas banda. Mas tô fraca
minha Santa. Tenho aqui cumigo que a princesa vai oiá por nóis. Arguma coisa me
diz isso. Acredito que os nêgo fujão num vai precisá fugi mais desses capitão
du mato cheio de marvadeza. A libertação
pelas mão dessa princesa há di acontecê. Por isso, peço que vóis micê minha
Santa da paricida alumia os caminhá
dela. Num sei se vô tê tempo di esperá que ela aqui chegue. Nas disorde da
minha fraqueza, nem sei se vô vivê muito mais não. Mas faço voto que a princesa
venha di dá tenência a esses coroné por aí que rôba nossas honra, nossos
caminhá livre di correntes pesadas por esses cafundó di Deus. Isso num é vida pra
nóis não.
Que
essa minha Ave-Maria seja oferecida pra alumiá muito os andá da princesa Isabé
e que eu tenha força di vivê um pouco mais inté na hora dela chegá prá essas
banda daqui da paricida”...
Fez-se o faustoso
acontecimento com fogos e pompa a presença da Princesa Isabel na Capela
d’Aparecida...
No mesmo dia de dezembro, tomada
por um mal, Nhá Risoleta já não se levantava mais de seu aposento,. Era cuidada
por uma negra de nome Cesarina a qual tinha muito gosto de amizade com ela.
Com a vista embaçada, Nhá
Risoleta só enxergava o clarão da vela que a negra Cesarina acendera e a luz da
lamparina que também luzia aquele acaso.
Alinhavando umas roupas
velhas, Cesarina olhava pelo rabo dos olhos os unguentos fervendo na lenha
enquanto proseava:
-Nhá,
a senhora dona princesa Isabé, dizem qui veio hoje módi assisti uma missa na
capela. Dizem que foi uma festança só lá em cima. Inté o nêgo Boa Ventura tocou
num instrumento de soprá umas ladainha bunita. Pena nóis num pudê tê ido lá vê.
Vou
apruveitá pra trazê um prato de sopa de inhame que eu fiz pra vê se a Nhá ganha
sustança e fique boa logo...
Depois de um jantar
memorável na residência do Visconde de Guaratinguetá, a Princesa e o Conde D’Eu
recolheram-se aos aposentos da casa para partirem logo pela manhã para a antiga
Capital do Império.
Foi no raiar deste mesmo
dia, lá na Rua do Pinhão, que Nhá Risoleta também partiu. Serenamente feliz,
com o terço entrelaçado nas mãos calejadas de carregadeira d’água. Achando que
vivera um tanto mais a ponto de saber da passagem da Princesa pela Capela
d’Aparecida.
A honraria dessa assunção iluminou
os quatro cantos da “África negra aparecidense”...
O jornal, antigo e
indecifrável, confundiu-se no tempo e voou parecendo causar um milagre de
perseverança no coração de Nhá Risoleta, agora enfim liberta das mazelas da
vida e presa apenas na amplidão do céu da Rua do Pinhão...