Líder extinto



A surpresa causada pela renúncia veio acompanha de algumas incertezas, embora todos jurassem que era um episódio contornável na história.
Perdiam-se muitos fiéis (ou seriam infiéis?). Escândalos de pedofilia. Uma crise rondava as portas daquele ministério.
Reunidos os cardeais, e após alguns dias, o conclave decidiu com certa unanimidade. A fumaça branca saída da chaminé anunciava um novo líder agora negro pela primeira vez na história.
Era um período de transição extraordinária que representava o deslocamento do poder. Mazelas espirituais perdiam a nitidez. Preconceitos humanos pareciam varridos. Um momento único e histórico.
O líder vinha agora nascido num país miserável da África onde a fome e moléstias sacrificavam muitos inocentes. A AIDS era a que mais matava. Dizimava adultos e crianças que eram muitas.
Num decreto considerado insano por seus seguidores, tomou uma decisão espantosa e inédita: ia transferir a sede do ministério para seu país de origem por dois meses.
O mundo ficou perplexo. O Vaticano ficou ás moscas.
Mas o líder seguia firme sua caminhada quebrando paradigmas arcaicos.
Publicamente começou a defender o uso de preservativos, caçou como bruxas os pedófilos e os entregou à justiça civil. Defendia a pílula anticoncepcional para maior controle da natalidade. Uniu forças com outras religiões para acabar com a fome no mundo. Fez com que inimigos históricos se rendessem ao ecumenismo amplo. Despiu-se de suas riquezas e repartiu terras sagradas aos miseráveis, exercendo um papel mais ativo nesse sentido. Desaconselhou o pagamento do dizimo e supôs uma discussão mais ampla sobre o concubinato e o celibato. Decretou que a eutanásia era pseudônimo de Deus e que as experiências feitas com células tronco eram suas mãos agindo.
Fez longas pregações contra a homofobia e defendeu vorazmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo além de colocar em tese o benefício da pena de morte para a sociedade.
Usou e abusou da tecnologia para delatar as injustiças contra as minorias numa intervenção humanitária jamais vista. Foi insultado e adorado quando começou a achar válidas as opiniões de pagãos e leigos revoltosos. Repudiou governos que faziam o que bem entendiam de seu povo. Lutou com galhardia pregando a moral e não se importou se as suas ações teriam chances razoáveis de sucesso.
O povo, em poucos meses, aclamava seu santo nome. Surgiam pelos quatro cantos do mundo marchas de movimentos civis em massa. Era a chamada “revolução”.
Havia rumores de traidores entre os seus. Especulações que o líder não deixava influenciar na autoridade da fé.
Num dia incomum, não foi visto na janela do seu quarto como fazia todas as manhãs.
A preocupação não precisou arrombar a porta do quarto que sempre permanecia entreaberta.
Foi encontrado inerte em seus aposentos com um pedaço de pão em um das mãos que desaparecera de forma misteriosa antes que os paramédicos chegassem.
Ele havia jejuado alguns dias antes, mobilizado de orações diante de uma suposta crise em seu ministério. Mas alguns sabiam que não tinha sido a fome a causa de sua morte.
Na capela, entre a correria da notícia, alguém pedia perdão pelo ato cometido na madrugada insone.

Iniciava-se assim a convocação do segundo conclave em menos de um ano para se escolher outro líder...

Postagens mais visitadas deste blog

O chifre

Americanização

Os 90 anos do Cemitério Santa Rita em Aparecida