A bola.
Era um belo espetáculo.
Parecia que alguns, na condição de expectadores, queriam participar.
A gente não percebia que aquilo propunha uma integração de toda rua. Transeuntes, donas de casa reclamando do barulho, pais preocupados com a nossa roupa suja. Nosso mero desprezo com o mundo em volta, inconsciente, tinha era mesmo o intuito de sensibilizar todos dali sobre a grande importância do nosso jogo e assim talvez reconhecer aquela “gritaria e alvoroço” como fonte de autoconhecimento. Além de atividade física, lúdico, nosso futebol de todas as tardes era algo de grande prazer pra molecada. E a gente sequer imaginava que aquele distante e inocente cotidiano estava prestes a nos fadar à hombridade. A gente ainda não teclava, não pirava nem bebia. Nem baseava a nossa conduta em fatos irreais.
A escalada solitária do muro do cemitério velho despertava a coragem de quem por ventura chutava a bola lá dentro. A solidariedade neste momento difícil fazia de alguns verdadeiros heróis diante daquele “mito” que relacionava a nossa pequena capacidade de criança em tentar dar significado ao lugar e à sua existência em nossa ditosa infância. Um imaginário rico, mas de dinâmica impotente diante da operação de resgate da nossa bola de capotão. Uma metáfora presente que organizava nosso pensamento no sentido da coragem. Experiência que aquecia cada particularidade.
A simples abstração de um gol levava-nos ao entendimento de que era preciso manter distância da competitividade esmagada pela rivalidade. Tanto, que a todo instante, nós, os jogadores, éramos misturados frequentemente, sem times perpetuamente definidos. E ai daquele que tentasse pedir auxilio de alguém eternizado na solidão radical do outro lado do muro pra vencer... Na fantasia daquele tempo, nem sempre os melhores venciam.
A dificuldade em jogar numa rua de paralelepípedos restaurava em nós um louvor a falta de um campo com melhores condições para a prática do futebol. Os lugares estavam já naquela época sendo invadidos pelo concreto capital dos prédios. Valores sociais inerentes devido à expansão da espécie humana. A sociedade do conhecimento então dava mais espaço para atividades focadas nos conteúdos artísticos. Parecia que isso gerava mais riqueza. Mas nem por isso o nosso jogo acabava. Ele sempre recomeçava a cada tarde e o curso de nossa bola tinha mesmo um sentido indefinido.
O transeunte chutava, a dona de casa reclamava da bola batendo na janela que depois corria absorta daquele mundo de gente adulta.
Fomos invadindo a realidade do destino e o tempo foi assegurando a inesgotável corrida. Por muitas vezes o pensamento quis desistir. Alguns “chutaram” a vida para o outro lado do muro e não mais voltaram. Não subiram mais a velha rua do cemitério. Mas outras esferas associadas à esperança foram capazes de permitir que isso não acontecesse de forma generalizada. Muitos outros ainda disputam, não tanto mais inocentes, o grande jogo, cuja bola, segue agora num sentido mais definido: o sentido do bem, colhendo recompensas entre sorrisos, interrogações e emoções inéditas e dando asas ao lirismo de fortes expressões que alicerçam essa memória.
E a bola continua a rolar pela rua...
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