As velhas inspirações das ruas


Em 1998 eu era balconista de um bar badalado em Aparecida que ficava bem no começo da Rua Oliveira Braga: o Bar do Chopp, do meu camarada João Siri. Bar frequentado por gente bacana considerada “a nata” de Aparecida.
Era todo o sábado que um grupo de moças muito bonitas se juntavam do outro lado da rua, em frente ao bar, pra ficar curtindo a noite. Umas já tomavam um chopinho, outras ainda não tinham idade pra tal.
Num sábado assim, me deixei levar pelos encantos de uma moça linda que se encontrava por lá. Devo ter confundido alguma coisa, mas percebi alguns olhares dela pra mim sempre quando olhava naquela direção. Foi assim que eu acreditei na paquera.
Impulsionado como sempre pelos versos escritos nos guardanapos de papel, recriei certa coragem e acabei mandando entregar um bilhete à garota com a seguinte frase:

“A única distância que estraga,
é a rua que nos separa
nas calçadas da Oliveira Braga”...

Minutos depois, o mesmo moleque que tinha ido entregar o papel, voltou me entregando o mesmo bilhete e dizendo: “Ela leu e pediu pra te devolver”...
Entendi naquele instante “com quantos nãos se pode fazer um sim” e segui no meu ofício. Nunca mais esqueci o rosto dela que simplesmente havia matado minha pobre poesia.
Hoje pela manhã, treze anos depois, eis que o ônibus em que eu estava pára num ponto na Avenida Padroeira do Brasil e aquela mesma garota, agora uma mulher, entra no circular.
A marca do tempo parecia que tinha sido cruel com ela. Aspecto sofrível e velho, embora eu saiba que inspiração é algo atemporal. Não trazia aliança em seus dedos. Trazia sim um bebê no colo e mais duas crianças maiores que, rastejando pelo chão, passaram por debaixo da roleta parecendo ainda sonolentas.
O assento ao meu lado era um dos poucos vazios que tinham no ônibus.
Ela veio em minha direção e, talvez se lembrando daqueles versos, preferiu não se sentar ao meu lado. Ou quem sabe a agonia de uma lembrança lhe trouxesse alguma vergonha.
Olhou-me profundamente nos olhos, momento em que eu pude perceber a falta de brilho nos seus. Olhos cansados e avermelhados, circulados por gritantes olheiras.
Puxando os meninos maiores, preferiu se sentar do outro lado depois de me cumprimentar com a cabeça.
Foi aí que me lembrei de todo episódio do bilhete e num pensamento secreto meu silêncio anotou no bloco de notas do celular outro verso:

A distância que ainda estraga,
só mesmo o tempo viu.
E continuamos separados agora
no asfalto da “Padroeira do Brasil”.

Desci no ponto final da rodoviária de Guaratinguetá e nem vi onde aquela velha inspiração desceu...

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