Despacho.


Morar na rua vizinha ao velho cemitério Santa Rita proporciona momentos eternos dignos de documentário. Um privilégio que a memória redesenha por anos perpetuando o imaginário como forma sublime de rotular a saudade de um tempo.
A movimentação naquela manhã afetou o cotidiano com impacto. Também pudera: bem no pequeno portão que dava passagem aos restos que vinham do cemitério, uma senhora mulata, toda vestida de branco, espalhava pela calçada em frente seus apetrechos totalmente alheia ao burburinho de quem passava. Alguns, atrasados para a expansão de suas necessidades, olhavam atônitos o desenrolar da velha senhora diante de seu oficio incomum para àquela hora da manhã.
Velhas beatas, espiando pelas janelas, repetiam solenemente o sinal da cruz diante daquela cena. Uma delas debruçou-se ao parapeito colocando uma imagem de santo para que o gesso abençoado protegesse a casa de alguma forma. A fumaça dos charutos espalhados pelo chão subia ao céu sem nenhuma culpa indiferente às palavras desferidas dos curiosos que abanavam a frente do nariz como quem sentia certo nojo daquilo que nem entendiam.
As mães, escoltando as crianças sonolentas que iam para a escola, tapavam seus rostinhos curiosos, com medo que a mandinga desconhecida lhes enchesse de algum quebranto.
E a velha senhora, sentada entre suas cumbucas de barro, se perdia concentrada e solene no seu misticismo um tanto colorido. Mexia uma farofa, baforava outro charuto e jogava cachaça de uma garrafa numa caneca de louça. Virava bifes sangrando de um lado para outro. Espalhava pipocas doces e salgadas pelo redor. Separava algumas folhas de arruda e acendia velas de cores múltiplas. Balbuciava palavras embaralhadas que mais parecia um dialeto perante seus orixás. Beijava seu patuá dependurado no pescoço tentando afastar qualquer mandinga ou desfazer algum feitiço ou vudu.
Anonimamente, alguém ligara para o número da polícia que logo enviou uma “veraneio vascaína” a qual vomitou carrancudos meganhas dispostos a acabar com o despacho da velha mulata. Um deles decidiu apenas recolher a senhora para o interior do camburão e não mexer, por respeito, nos seus apetrechos. Fosse hoje, acho que haveria alguma sensata intervenção para que a velha continuasse com sua servidão ao babalaô.
Das janelas das beatas ainda deu pra se ouvir o “credo”, entoado diante do fim daquilo. O santo exposto foi recolhido de forma vã, pois parecia ter dado mostras de seu poder.
Um senhor pobretão que vivia mexendo nas latas de lixo foi o responsável por recolher os bifes das cumbucas de barro embrulhando-os em papel de pão.
Benzeu-se com uma das mãos e encheu a boca com um gole de cachaça deixada no local, atrapalhando o gari, que com a vassoura, tentava juntar com certo medo os restos de farofa olhada de longe por alguns pardais famintos...

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