Um recado congelado no tempo (2º Lugar no XXVI Concurso de Contos da Biblioteca de Aparecida 2015)
Eu andava pelas alamedas do velho cemitério Santa
Rita tentando encontrar a o jazigo do lendário Simão Marcelino de Oliveira,
vulgo Simão Miné.
Era uma tarde
nublada. Ouço o barulho de alguém varrendo o chão. Mais alguns passos e vejo um
senhor negro de chapéu, fumando um inconfundível cigarro de palha cuja fumaça inundava
o espaço.
Ao me ver, ele
parou de varrer e me cumprimentou:
-Boa tarde!
-Boa tarde meu senhor. Por gentileza estou
fazendo um estudo para um jornal e gostaria de saber onde fica a sepultura do
famoso Simão Miné. O senhor sabe em que quadra fica?
-Sei sim. Mas fica lá na entrada do cemitéro. É
uma das sipurtura mais antiga...
-Me deixa tirar uma dúvida com o senhor... É
verdade que o tal Simão Miné era dono dessas terras todas que formam o Bairro
de Santa Rita?
-Meu fio, o Simão Miné foi escravo lá pás banda
de pinda. Ele foi trazido pra cá por um padre pra realizá serviço na igreja.
Como ele era um nêgo ladino, não tardo muito ele começô a vendê água pus romêro
que vinha na paricida rezá. Ele junto dinhêro, compro sua furria e as terra. As
terras dele pegava por aqui tudo, subia o morro dus morais e ia embora grotão
afora até berá o Bonfim...
-Ele então era uma espécie de dono do cemitério?
-Não. Ele tinha um grande coração. As autoridade
de Guará quiria tirá o cemitéro lá de cima, mas não tinha lugar pra abrir
outro. O Simão Miné deu essas terras aqui pra se fazê o cemitéro novo, que hoje
virô cemitéro veio...
-Ah entendi. Quer dizer que o cemitério era em
outro lugar antes deste aqui?
-Era. Era subino aqui a prefeitura. Foi um
vereador de Guará que teve a ideia de criá um cemitéro ali. As autoridade compráro
um terreno atráis da basílica véia. Era onde tinha o convento das irmã de São
Carlo. Isso foi por vórta de 1840 e pôco. Ali o cemitéro ficô uns déi, dozi anu.
Foi quando arresorvêro removê o cemtéro dali prá outro lugá. Foi sorto um
cumunicado num jorná da época sabe, avisanô as famia que tivesse parente
interrado no cemitéro que pudesse dá um jeito de... Como se diz mêmo...?
-Transladar!
-Isso... Isso mêmo. E com as permissão do Simão
Miné o cemitéro começô a recebê os morto da ocasião...
-Isso foi em 1921 não é?
-Óia, o anu eu não carculo direito não. Só sei
que o Simão Miné foi um dos primêro a sê interrado aqui na Santa Rita.
-Puxa vida! Como o senhor sabe disso tudo?
-Eu sô véio minino... Já passei dos 70 anu.
Escuitei muita história que os mais véio contava. Nessa época, aparicida ainda
pertencia pra Guará. Foi uma guerra danada com o povo daqui e de Guará. Aos pôco,
aparicida foi ficanô livre de Guará. Se libertâno, se libertâno. Inté que se
emancipô.
Essa terra aqui do cemitéro era tudo um brejo só.
Minava uma água boa inté. Ali berâno a cerca do cemitéro na rua do floriano
pexôto tinha inté uma tornêra pro povo pegá água. Muita gente tinha nojo,
dizêno que era água de difunto. Mas os eis iscravo que vivia ali na rua do
pinhão intè feiz um encanamento de bambu pra puxá água prêis. Num sei se ocê
sabe, mais ali na rua primêro de maio era uma comunidade de eis iscravo...
-Não, não sabia...
-Pois intão... Daí o cemitéro foi enchêno de
difunto, foi enchêno, foi enchêno.
O Sêo Américo que era prefeito, isso por vórta de
1948, arresorveu construí uns gavetão lá nos fundo do cemitéro. O povo não
gostô muito não. Achou isquisito. Quando o Sólo Perêra ganhô pra prefeito, a
primêra coisa que ele féis foi acabá com os gavetão. Dirrubô tudo! Mais antis
ele disapropiô uns mir metro pra dentro da chácara do Sêo Joaquim Raé. Em
acerto com o Joaquim Raé ele mudô tudo os corpo dos gavetão pra esse pedaço de
chão da chácara.
-Nossa, eu estou impressionado com essas
histórias... O senhor sabe tudo deste lugar hein...
-Pois é... Estou tanto tempo por aqui... Já vi
tanta coisa acuntecê... Tantus amigo entrâno carregado pra dentro dessa
eternidade aqui...
-Posso imaginar sua tristeza...
-É... Mas já acunteceu tamém umas coisa
ingraçada...
-Ah é...
-É. Teve uma vêis que um prefeito chamado Arfredo
borabébi veio aqui acumpanhado dum secretário dele e foi lêno as lápide dos
túmo e mandâno o secretário ir anotâno os nome dos morto numa fôia...
-Ué mais, porque isso?
-É que naquela época estava formâno o bairro do
jardim Paraíba. Ele tava escolhêno os nome das rua conforme os nome dos morto
que ele jurgava importante...
-Hahahaha... Essa eu não sabia... Bem criativo
esse prefeito...
-Eu lembro tamém quando dirrubáro o antigo muro
de taipas que tinha...
-Ué mas, o cemitério ficou sem muro?
-Ficô. Ele foi dirrubado porque o muro de taipa
tava juntâno muito escorpião. Aí os pedrêro ia dirrubâno uma parte e fazêno, dirrubãno
e fazêno. E pra vigiá a obra, tinha um tal de vigia pilidado de pardal que
vivia dando susto no zotro que passava di noite...
-Mas isso conseguiu acabar com os escorpiões?
-Por um tempo sim. Mas dispois vortô a aparecê de
novo. Tanto que dispois, o prefeito Cláudio Amador inventô de colocá umas
galinha dentro do cemitéro pra ver se cumia os escorpião...
-Não... Não acredito! Isso foi verdade? E deu
certo?
-As galinhas começáro sê surrupiada... Aí a ideia
num foi pra frente...
-Mas eu soube também que teve um prefeito que
colocou alguns cachorros da raça Pit Bull pra vigiar o cemitério... É verdade
isso?
-É verdade! Foi o Zé Loquinho... A história é que
não tinha nenhum vigia que tivesse corage de ficar olhando o cemitéro durante a
noite. Tava têno muito robô aqui sabe. Mas a ideia tamém não vingô.
-Essa passou até na televisão... Não é à toa que
ele se chama Zé Louquinho não é ?...
Pois é... Ele é maluco mêmo... Você aquerdita que
ele inté se casô no portão do cemitéro?
-Não, espera um pouco, isso não aconteceu...
-Aconteceu sim. Ele se casô bem em frente o
portão do cemitéro e a noiva dele chego numa carroça...
--Meu Deus...Esse cara é maluco mesmo...
-É seu moço... Eu tô tanto tempo por aqui... Já
vi tanta coisa acuntecê... E mêmo ânssim parece que o tempo aqui num passa.
Fico aqui vênu os tùmu, varrêno pra lá e pra cá, fumâno meu cigarrinho di páia...
O moço aceita pitá?
-Não, não. Eu não fumo, muito obrigado.
Meu celular
toca. Minha esposa ao telefone me lembrava de umas coisas pra fazer:
-Meu senhor, o papo está muito bom, mas eu
preciso ir. Adorei suas histórias viu. Vai me ajudar muito na minha matéria pro
jornal...
-Que bão moço! Que bão mêmo...
-Deixe-me ir... Fica com Deus...
-Vai cum Deus tamém...
Eu havia me
distraído tanto com a conversa do coveiro que acabei por me esquecer de pedir
pra ele me mostrar o jazigo do tal Simão Miné.
No outro dia bem
cedo, voltei ao cemitério pra resolver o assunto. Fui perguntar para outro
coveiro dali sobre aquele senhor:
-Meu amigo, bom dia. Estou procurando um outro
coveiro já de idade que trabalha aqui com você. Um que usa chapéu e fica
fumando um cigarrinho de palha...
-Coveiro que usa chapéu e fuma cigarro de palha?
-É... Isso mesmo. Estive conversando um tempão
com ele ontem e me esqueci até de perguntar o nome dele...
-Olha amigo, aqui só trabalho eu e mais dois
coveiros. Não tem nenhum coveiro de mais idade aqui não... Será que não é lá no
Pio XII ?
-Não, não. É aqui mesmo...
-Então, aqui não tem ninguém com essa descrição
que o senhor falou...
Um lugar
atemporal como aquele me despertou ainda mais minha curiosidade.
Até que o outro
coveiro foi solícito. Deixou de fazer o que estava fazendo pra me mostrar o
jazigo do Simão Miné que ficava bem na entrada do velho cemitério Santa Rita. A
lápide de mármore um tanto enegrecida pela ação do tempo eternizava:
AQUI
REPOUSA SIMÃO M. DE OLIVEIRA
+15/10/1923
TRIBUTO DE
AMOR CONJUGAL
Na sepultura,
não havia fotografia que pudesse mostrar quem foi Simão Miné. Mas a falta de um
rosto em meio aquela eternidade não me deixou acreditar que aquele cheiro de
cigarro de palha que eu senti novamente ali era apenas uma misteriosa
coincidência.
Fazendo o sinal
da cruz, acreditei mesmo que era um recado dele congelado no tempo...