O gigante aprisionado.


Quando a gente é criança tudo em nossa volta parece grandioso. Não se tem a noção perfeita nem a dimensão exata das coisas.
A cidade de Aparecida é cheia de poesia e de beleza, onde o passado enfeita o presente o emoldurando com luzes de fé e de amor. E diante dessa fé, o exemplo de vida de um Santo negro traduz a novidade que sempre se preserva. Da mesma forma, a dimensão de uma tradição, com traços incomparáveis, é sempre renovada.
Num momento mágico esses traços se transformam em laços eternos das coisas.
Os olhos se elevam no sentido contrário do comum quando é época de Festa de São Benedito. E em toda época de festa era sagrado:
-Meu pai se munia de rolos e rolos de filmes, dependurava a velha “Flexaret” no pescoço e assim a gente seguia junto para a praça. Eu, com meus pensamentos presos nas mais de mil guloseimas que ia encontrar por lá. Ele atento a cada pose que iam ilustrar o centenário Jornal Santuário do semestre o qual era repórter fotográfico.
O caminho mais curto até lá era subir a ladeira da prefeitura e depois descer a Rua Monte Carmelo, onde, agarrado a ele, eu quase desaparecia em meio a tanta gente.
Era gente indo, gente vindo. Subindo, descendo. Alguns paravam nas calçadas para gravar em suas retinas o esplendor das congadas que naquele dia já se misturavam aos devotos. Os ritmos iam acelerando o coração e transmitindo com simplicidade um ritual sem perder a originalidade, mesmo quando renovadas por necessidade de adaptação a modernos tempos e contextos ou pela iniciativa criadora de seus participantes que se alternam de geração em geração.
Mesmo com o passar do inexorável tempo, parece que todos ainda preservavam os mesmos elementos dentro de uma mesma estrutura.
Descendo a ladeira da Rua Monte Carmelo em direção á praça elas iam coordenando mil pensamentos, tecendo mil olhares. Isso, guardado na memória, se torna infinitamente belo.
E naquele embalo de ritmos e cores infinitas, o velho fotógrafo, em poucos instantes, já havia eternizado belos momentos daquela devoção.
Na Rua Oliveira Braga bonecos gigantes recriavam o artista a cada ano e corriam atrás do futuro que sorria inocente como se a vida fosse uma eterna brincadeira dessas que nem mesmo o tempo consegue apagar.
E inserido nessa folia, tendo os olhos fixos nas bandeirinhas coloridas que contrastavam com o azul de um infinito céu, percebia que tinha uma saudosa identidade ali, onde meu pai era o guardião que afastava o medo do “João Paulino” e da “Maria Angu”, personagens que iam se transformar em “monstros” na minha idéia de menino.
Ali, eu já ia criando na inocência, meios para poder escapar dos bonecos gigantes que corriam pela rua sem direção definida, mas sempre indo atrás das crianças que estavam por perto. Meu medo era tremendo e “tremendo” eu ainda reunia alguma coragem de estar ali.
Papai sempre tentava me tranqüilizar. Mas no calor da festa, vez ou outra ele se concentrava em poses imperdíveis, cravado no centro de sua luminescência.
Ia eternizando tudo em belas fotografias guardadas até hoje com tons em branco e preto, sobressaindo em meio ao colorido daquela vida.
Num certo momento, eu não pude ser capaz de me desvencilhar do meu medo.
De frente com um daqueles bonecos gigantes que parecia vir correndo em minha direção, não pensei duas vezes. Escapei do guardião distraído e fugi me enfiando por debaixo de um “Volks” que estava estacionada bem no começo da Rua Oliveira Braga. Não houve santo que fosse capaz de me arrastar de lá. Papai com sua calmaria de sempre quis me comprar com alguns doces e uma caixinha de “estalinhos”, prometendo que assim nós dois derrubaríamos e prenderíamos o tal gigante.
Quando o boneco estava bem longe é que eu pude deixar aquele refúgio improvisado que encontrei. Logo, lá estávamos nos dois pela praça. Ele aprisionando luzes e eu esquecido do tempo naquele dia colorido. Mas ainda um pouco assustado com tudo aquilo que aconteceu.
Ao redor da praça eram inúmeras as barracas onde todos se encontravam com a leve impressão de que nunca se afastaram. O instante realçava a singularidade daquela alegria intensificando o calor humano. Não sabia direito o que isso significava, pois a única barraca que me encantava era aquela repleta de “maçãs do amor”. Ali preso naquela barraca, sentia meu coração disparado como os muitos tambores que ao redor rufavam soberanos pelas mãos calejadas de pessoas simples. Novos tons passavam por mim. Era como se o Glorioso São Benedito potencializasse as energias de forma positiva num milagre colorido. Isso encantava o olhar pra quem entendia a linguagem ou conseguia interpretar as mensagens que os tons enviam. As cores da Festa ensinavam a ver melhor as tonalidades infinitas que existem no universo desse acontecimento. A luz de diversas cores afeta emoções e é grande aliada no alcance da harmonia. A lembrança ia resgatando no momento uma propícia explosão de pequenos grandes instantes.
Exatamente ali, o lado profano e doce da festa começa enfim acontecer. Mil cores, uma crença e vários ritmos desembocando no bojo de um amontoado de emoções e nos fazendo subordinados ao peso de nossas próprias raízes.
Um cheiro característico impregnando o nariz. Cheiro de festa.
Em frente à velha igreja, numa simbologia de encher os olhos, a multidão carregava um enorme mastro, decorado caprichosamente por um outro artista para a grande cerimônia do dia. Ele chegava amparado por mãos calejadas, num bailar de força e de fé, traçando um elo sagrado unindo o chão ao céu. Deus ao homem mais uma vez.
Meu pai não sabia se rezava, fotografava ou apenas olhava. Parece que tudo fazia parte de sua emoção. Naquele momento tinha-se a noção exata de tal energia exalada pelo esplendor da grandiosa festa onde o povo, tomado pela antiga mania de crer, ia fecundando o chão com suas esperanças de uma vida melhor em forma de pedidos enterrados junto com o mastro. Calejada, a fé realmente só sabe ter esperança.
Dois anjos, um de cada lado, no alto da igreja, resistiam ao tempo e zelavam pela harmonia do instante. Meu pai achava-me parecido com eles.
Mais dois, na entrada do templo, guiava quem chegava à praça e imortalizavam a presença do artista “Chico santeiro”. Eu não sabia bem quem ele era, mas meu pai sabia, e isso pra mim já era o bastante.
Do lado de dentro a presença marcante desse artista era retratada também numa humilde imagem do Santo negro esculpida há anos pelas hábeis mãos do homem.
No galope dos mais belos alados o branco da paz disparava em cavalgada pelas ladeiras do tempo, colocando coronéis inclinados num profundo respeito.
Naquele momento nós dois já estávamos a caminho de casa. Haviam se esgotados os filmes e a minha energia de menino.
E eis que surgiu a alvorada...
O repique de todas as congadas promovia o despertar da madrugada e uma a uma, num compasso impressionante, elas entravam na igreja inserindo uma diferente beleza na oração e um novo sentido na devoção.
O rei e a rainha transferiam sua tal importância misturados ao povo numa razão inteiramente suprema, praticando a mais linda unificação das classes ao repartir o pão em sua mesa. Nesse instante já se podia apreciar o clarear do dia...
A estrela derradeira foi se desprendendo no firmamento e pássaros imprimiam em revoada a liberdade no céu. O dia seguiu festivo. No cair da tarde, tudo parecia eterno. Estávamos outra vez por lá. Junto ia agora uma mãe jovem, rezando atrás da procissão segurando o rosário como quem se agarra a cada instante da vida.
A limpidez negra da Santa Aparecida, num belíssimo andor, arrastava a fé das pessoas que cobriam as ruas mais tradicionais, evocando a divindade.
Fogos coloriam o céu que já estava repleto de cores perpetuando o momento.
Alguns, num instante único, saíam nas janelas decoradas como altares reverenciando o Santo negro. Outros muitos esqueciam suas casas e tomavam por completo as calçadas históricas da cidade.
Alguns dias antes, entre papéis picados e orações, uma procissão e algumas congadas já tinham ido buscar Santa Rita em sua igreja demonstrando um singelo agradecimento. Como se traduzindo a alegria daquele que acolhe ou despertando em nós uma nova atitude de busca em todos os sentidos da vida.
O Santo negro, um dia, como muitos hoje, também não teve onde morar. Peregrinava feliz, de capela em capela.
Mas era visível perceber que todos celebravam na praça a alegria da vida e a bondade do Santo. A velha praça, que parecia ser o quintal da casa de São Benedito, que morava dentro de cada um que ali estava.
Para nós, a festa estava terminando. Mas mesmo longe, ainda era possível ver os fogos colorindo o crepúsculo daquele dia, emoldurado pelos restos azuis da tarde.
Inconscientes, meus passos cansados de menino andavam solenes e sonolentos pelas calçadas casuais, libertos de um destino. Janelas abriam-se excluindo o abandono.
Portas, rangendo em timbres antigos, alforriavam velhas certezas. Luzes nasciam da imprecisão do acaso, menosprezando a escuridão.Os olhos saudavam o brilho das cores e a alma seguia feliz o caminho árduo da vida retornando para a casa.
Congadas coloridas, agora em silêncio, caminhavam solenes desdobrando luzes e acendendo sombras, deixando nas ruas rastros iluminados.
Alguns dias após ter terminado a festa, papai aparece com as fotos tiradas na praça. E eis que entre elas, lá estava o retrato do gigante, agora inerte em minhas pequenas mãos.
Papai disse:
-Não falei que a gente ia conseguir prendê-lo?
De fato, de certa forma, o gigante que o meu guardião nunca temera estava finalmente preso. Quanta inocência...
E o tempo, como sempre, mais uma vez passou.
Na memória muitas lembranças. Diante dos olhos, tudo ainda agindo de uma forma grandiosa, só que agora em forma de belas palavras.
Hoje, a relíquia incrustada na parede sagrada do templo refaz nossa caminhada na vida e traz a verdadeira crença na bondade daquele Santo. Ensina-nos sua existência de humildade, de paz e de esperança.
Em frente, a força do horizonte ilumina o rio, desafiando uma simetria improvável e santificada. O mastro escreve uma linha direta unindo o chão ao céu. Deus ao homem.
Ao redor, a esperança transcende a tradição. O ritmo do mundo desemboca no espaço sólidos ecos. A lembrança se resgata no silêncio do momento, propícia à explosão de pequenos instantes.
E lá longe, adormecido entre nuvens, está o meu guardião. Repousando entre horizontes e aprisionando-me ainda os gigantes dessa história sem fim...

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