Conto: Os milagres da Grande Guerra - 2º Colocado no XXIX Concurso de Contos da Biblioteca Municipal de Aparecida 2018


                       Primeiro Sargento Benedito Barreto Filho


Quem poderia imaginar que o embarque do Monsenhor Feney, da cidade de Paraibuna, mudaria  para sempre o destino de um jovem soldado, cuja família, se reunia todas as tardes ao redor do velho rádio capela para, depois do Angelus, saber as notícias da guerra?
A atenção, sem dúvida, era para o boletim médico do combate na Itália que era lido, logo em seguida das notícias, por uma enfermeira. 
Quem poderia imaginar que um dia o caminho de tantas pessoas envolvidas podia se cruzar?

O bonde, enfim, descia a Rua Barão do Rio Branco, vindo um pouco atrasado da Praça Nossa Senhora Aparecida. O mensageiro saltou dele apressado e apenas cumprimentou a jovem Conceição que da janela perguntava:
- Nenhuma carta para nossa família?
- Infelizmente não senhorita...
Ela sabia que, em tempos de guerra, as correspondências dos soldados que lutavam na Itália eram severamente censuradas por razões de segurança. Mas a falta de notícias de seu irmão não entristecia seu coração. Amparada na oração, ela sabia que somente assim Dito seria protegido de qualquer mal que pudesse acontecer.
Alguns dias passados, bate palmas ao portão do solar o mesmo mensageiro, para a surpresa de todos:
- Tenho uma correspondência endereçada à Família Barreto!
Um silêncio profundo tomou conta da casa. Estavam atônitos. Podia-se até ouvir, com clareza, o barulho das rodas do bonde nos trilhos. Elas rangiam, em contraste a uma sineta, que ia a frente, na cabine do motorneiro.
Seu Barreto levantou-se lentamente da sua cadeira na varanda e foi ao encontro do mensageiro:
- Boa tarde... É uma correspondência, mas não é uma carta. É um exemplar de um jornal que veio lá da capital...
Embora apressado, o rapaz ainda pôde notar o ar de desapontamento de todos que correram para ver a novidade. Decepcionado, Seu Barreto nem abriu o jornal que ficou ali, jogado na velha marquesa da sala.

Depois de uma longa viagem, Monsenhor Feney, desembarcou na Itália. Já passava da meia noite quando comeu alguma coisa. Precisava recolher-se logo, pois pela manhã seria deslocado para Montese, cidade onde ocorrera uma sangrenta batalha, combate em que muitos soldados brasileiros perderam a vida.
A chegada do religioso foi singela, mas tocante, um pequeno ato onde todos rezaram, emocionados, a morte dos heroicos companheiros.
O Pelotão de Sepultamento da Força Expedicionária Brasileira esperava apenas pela oração de encomendação que Monsenhor Feney daria aos mortos que estavam em sacos feitos de lona para serem transportados para Pistóia.
O cenário era desolador. Há três meses, soldados brasileiros e as tropas aliadas tentavam conter o avanço do exército alemão.
Em Montense, a tenacidade, o ardor combativo e as qualidades morais e profissionais dos brasileiros foram demonstradas em seu raro espírito ofensivo, sob os fogos da Infantaria e Artilharia do Inimigo, transpondo caminhos desenfiados, neutralizando campos minados, e assegurando posteriormente para a Divisão Brasileira a posse definitiva dessa importante posição alemã dentro do contexto da Guerra.

Numa tarde quente e tranquila, Conceição estava arrumando a sala e, como de costume, recolheu os jornais velhos, entre eles aquele periódico, para levar à padaria do Sr. Jayme Ribeiro, que sempre os usava para embrulhar frutas e outras mercadorias. Porém, um anúncio de uma nova partitura para piano chamou-lhe a atenção e ela começou a folhear aquele jornal, despretensiosamente, prestando mais atenção nas fotografias que ilustravam as diversas reportagens.
Foi quando um retrato lhe chamou a atenção: era imagem de Nossa Senhora Aparecida num pequeno e improvisado andor carregado por alguns soldados. Ela entendeu então que a intenção do remetente, um primo que morava em São Paulo, foi de mostrar o quanto o exército brasileiro tinha devoção para com a Santa. Emocionada, começou a ler:
"Mal desembarcado o 2º Escalão, eram cerca de 10.000 homens, foi realizada em Pisa (Itália) uma procissão belíssima. Os soldados transportavam uma imagem de Nossa de Senhora d’Apparecida, cheios de unção, cantando cânticos aprendidos na infância em suas paróquias do interior. Os italianos assistiam extasiados àquele desfile triunfal de soldados, cujo troféu era a imagem daquela Virgem Negra do Brasil. Nunca, jamais, a península italiana, há milênios invadida por tropas africanas, bárbaras, napoleônicas, germânicas, assistira a um desfile como aquele, em que oficiais e soldados, irmanados pela mesma fé católica, davam um exemplo magnífico de religiosidade” ...
Conceição encheu-se de emoção e saiu correndo a chamar pelo pai:
- Papai, papai, precisa ler isso!
A movimentação chamou a atenção da família que se juntou em torno do velho patriarca. Todos se abraçaram de felicidade tendo ainda mais certeza de que Nossa Senhora estava com ele. E cantaram, com Conceição ao piano, celebrando a esperança em rever o irmão.

Olhando para o céu, Monsenhor Feney pediu a Deus forças para a missão dolorosa de abençoar os heróis já sem vida. E ele foi, um a um, lendo os nomes nas tarjas dos uniformes sujos, cumprindo seu dever.
Existiram tantas coincidências nos fatos da história que tudo só pode nos remeter à força de Deus que escreve os instantes. O sacerdote, por ser um instrumento desse grandioso Deus, leu com mais atenção a inscrição na tarja de um dos soldados ali jazido: Sd. Barreto!
- Soldado Barreto... Você sabe de onde ele é? Perguntou ao recruta que ali estava para ajudá-lo. Prontamente o rapaz, com papéis e anotações de todos ali dizimados, informou-lhe que o soldado em questão era do Estado de São Paulo.
- Os documentos, Monsenhor, dizem ainda que ele é de Aparecida do Norte e foi morto ao pisar numa mina...
De frente ao saco onde estava Dito, Feney percebeu um movimento. O soldado Barreto, ali inerte, deu um leve suspiro, parecendo guiado por alguma força a mostrar que estava vivo. Assustado e surpreso o Monsenhor gritou: “Este se mexeu! Está vivo!”
A correria foi intensa. Os médicos o socorreram às pressas, num misto de alegria e emoção. Um milagre inesperado para alguém que, dali há poucos minutos, poderia ter sido enterrado vivo.
Que coincidência! Monsenhor Feney tinha conhecido o maestro Benedito Júlio Barreto em Taubaté, durante a apresentação de uma orquestra. Foi assim que se deteve ao sobrenome. Nunca poderia imaginar encontrar o filho do músico nesta condição.
Mais tarde, num dos leitos do 16° Hospital de Evacuação, Dito Barreto recebeu a visita de Feney. Conversavam longamente quando foram interrompidos por um sargento, que fazia parte do Pelotão de Sepultamentos.
Entre objetos separados e catalogados numa caixa, ele retirou um pequeno patuá, uma medalha de Nossa Senhora Aparecida envolta num tecido, já todo sujo e parecendo ser alinhavada a mão, e entregou ao soldado ferido. Dito Barreto pegou a pequena lembrança emocionado e mostrou a Feney dizendo:
- Talvez isto é que tenha me dado forças para continuar vivo! A pequena medalha, lembrava um “Agnus Dei”, foi costurada pelo seu pai, Maestro Barreto. Ele lhe entregara na estação de trem de Aparecida, quando os Pracinhas embarcaram para a Capital, de onde partiriam para a Itália.

A volta dos Pracinhas do Vale do Paraíba ao final da Segunda Guerra, em 1945, teve uma alegria ainda maior em Aparecida, diante da grandiosa história do herói e soldado Benedito Barreto. A inesquecível Corporação Musical Aurora Aparecidense alegrou com toda pompa a cerimônia de homenagem aos soldados realizada no centro da cidade, onde foi construído um Arco do Triunfo no bem no início da Ladeira Monte Carmelo.
Depois da festa, a família Barreto reuniu-se ainda no solar, à Rua Barão do Rio Branco, com muita música e ponche para os convidados. Dito Barreto era abraçado por todos sem se separar da bela Didita. Foi uma festa que entrou madrugada adentro.
No oratório da sala, a Imagem de Nossa Senhora Aparecida reinava. Fora batizada desde então por “Nossa Senhora da Guerra”.



Os anos se passaram. O moinho do tempo moeu muitas coisas. Muitos partiram, outros chegaram. O oratório já não ficava mais na sala. A pedido de Dito, fora colocada em seus aposentos desde a sua volta. 
A vida seguiu seu ritmo, o Pracinha casou-se com a amada e mudou-se para São Paulo.
A irmã, Conceição, aprimorou os estudos musicais tornando-se organista e compositora. Entre várias composições, criou o Hino da Legião de Maria, conhecido e traduzido no mundo todo.
Certa vez, um grupo de Legionários de Maria, participando de um congresso em Aparecida, quis visitar e conhecer a autora do hino da Legião. Foram recebidos com alegria na antiga casa da Barão do Rio Branco. Dona Conceição fez questão de tocar ao piano o cântico religioso, emocionando todos. Uma senhora, observando um porta-retratos em cima do piano, com a fotografia de um jovem soldado, se interessou pela imagem. Dona Conceição então contou a história que se passou na Itália. Ao final da conversa, aquela senhora disse que era ela a enfermeira que falava os boletins médicos da guerra no rádio, na distante década de 40. As duas se abraçaram e outra vez a emoção tomou conta do velho solar.

Ao longe, foi possível ouvir os últimos acordes da Aurora Aparecidense.
Na varanda, tendo ainda alguns fogos espocando os céus de Aparecida, Didita entregou a Dito Barreto um singelo presente. Uma pequena caixa de madeira, toda decorada. Dentro havia um bilhete que durou para sempre:
“A ti, bravo Expedicionário Patrício, que com o próprio sangue regaste terra estranha em defesa da Pátria distante, esta lembrança minha. Nela poderás arquivar para os dias futuros as insígnias recordações das cenas e episódios que fizeram de ti um herói” ...


O bravo Sargento Benedito Júlio Barreto Filho, foi um ser humano especial. Um homem comum iluminado pela bondade.
Tombou o herói aos 88 anos…

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