Fidelidade Revelada
Além da alegria do lançamento do novo Livro Os Guardiões da
Santa – Outras histórias – o ano de 2017 foi coroado com mais uma Conquista Literária,
quando meu conto “Fidelidade Revelada” obteve o Primeiro Lugar no XXVIII Concurso
de Contos da Biblioteca Municipal de Aparecida.
O Tetracampeonato de 2017 veio
somar glórias às conquistas dos Primeiros Lugares em 2005, 2009 e 2014, aos
Segundos Lugares de 2006, 2013 e 2015 e aos Terceiros Lugares de 2008 e 2011.
Na íntegra, o conto vencedor de 2017:
Fidelidade Revelada
Contam
que o poeta Manuel Bandeira certa vez esteve em Aparecida. Chegou de trem na
estação, vindo de São Paulo.
Bem de
frente ao Colegião, deu sinal para o bonde parar. Queria subir até
a praça da basílica velha. Havia escutado falar sobre uma técnica que os
retratistas desenvolveram em revelar uma fotografia que pudesse juntar duas
pessoas no mesmo postal, mesmo se uma delas estivesse ali ou não. Era uma
técnica inventada pelos mais notórios fotógrafos da época. Um serviço
trabalhoso, mas de resultado surpreendente.
No
bolso do paletó, Manuel Bandeira levava a fotografia de uma mulher. Dizem que
ela foi responsável por inspirar o poeta Bandeira por décadas sem saber do
sentimento dele.
Via-o mesmo como um grande amigo. Era um retrato tirado em
frente à matriz de Aparecida que tinha gravado no rodapé as palavras “Photo
J. Abade”. E o poeta foi então procurar pelo tal na Praça d’Aparecida
do Norte...
O bonde
subiu mansamente a Rua Nova e ganhou a praça. O ponto final ficava em frente à
farmácia do seu Américo Alves. Ali Bandeira desceu, comprou um elixir para o
estômago (havia comido algo na última parada do trem que não lhe caiu muito
bem), trocou dois dedos de prosa com seu Américo e, sem ser reconhecido
pelo farmacêutico, foi em busca do tal retratista “J. Abade”.
Andou
vagarosamente pelo largo e se aproximou de um retratista que estava com a
cabeça “enfiada” dentro de uma máquina:
- Bom
dia meu amigo. Procuro por um retratista cujo nome está gravado nesta
fotografia. J. Abade. Sabe quem é?
- Bom
dia. Olha meu senhor, o Joãozinho Abade anda meio adoentado. A idade pesou para
ele e já faz alguns dias que ele não sobe mais a praça...
- Ah...
então nome dele é João Abade?
- Isso
mesmo, senhor João Abade. Ele é um dos mais antigos por aqui...
-
Mas meu bom homem, talvez o senhor possa me ajudar. Ouvi falar de uma técnica
empregada por vocês fotógrafos que conseguem unir duas pessoas no mesmo
retrato. Você consegue fazer esse trabalho?
-Olha,
eu não consigo fazer isso. Mas vou te apresentar um retratista que pode lhe
ajudar, me acompanhe...
Algumas
passadas pelo lugar e encontram o retratista Raphael Menezes, que estava dando
um trato no seu maquinário, já que era um dia de pouco movimento na praça.
O
diálogo entre os dois foi mágico:
- Bom
dia meu senhor, me chamo Manuel Bandeira. Qual vossa graça por gentileza?
- Bom
dia. Sou Raphael Menezes, seu criado. Em que posso ser útil?
O poeta
explicou ao Raphaelzinho todo o imbróglio.
Logo,
Bandeira já estava em frente a matriz. Estático para pose.
Uma
ajeitada na gravata, braço esticado como se abraçasse alguém. Tudo nos
conformes.
O
disparo da objetiva Menisco foi rápido: “Clic”.
- Agora,
enquanto o senhor toma um café, vou revelar seu postal ...
Foram
necessários uns 30 minutos, tempo necessário para o poeta Bandeira tomar outra
dose do seu elixir. Um café não cairia bem naquele momento.
Logo
veio o Raphael Menezes trazendo a fotografia onde a imagem revelava o
reencontro entre Bandeira e sua amada. A chapa em negativo era sobreposta sobre
a fotografia levada pelo poeta. Dentro da máquina, o retratista fazia uma nova
foto (sabe-se lá como) e as duas pessoas apareciam juntas. Algo mágico que
deixou Manuel Bandeira cheio de encantamento com o resultado.
“Eu
demorei um pouco porque estive procurando um papel específico pra revelar o
retrato”, disse Raphaelzinho. Ele também perdeu um bom
tempo procurando o gabarito para gravar o nome “J. Abade” no
retrato. Todo maquinário do retratista João Abade estava guardado no foto do
retratista Isaac Encarnação.
Depois
de Bandeira contar que a mulher da fotografia havia falecido havia mais ou
menos 15 dias, o poeta ainda perguntou ao retratista:
- Mas
me diga, por que você gravou o nome do João Abade e não o seu na fotografia?
- Devo
muito ao Joãozinho sabe. Ele está passando um momento ruim. Além de fazer o
nome perdurar, levarei os merréis deste serviço para ele hoje...
Aquela
fidelidade tocou profundamente o poeta.
Já no
vagão do trem de prata, Manuel Bandeira olhava a fotografia com ternura. Era
uma mistura de sentimentos e saudades.
Sacou
sua caneta do bolso e escreveu atrás do postal os versos do amigo Drummond:
“É
apenas uma fotografia, mas como dói...”
O
retratista João Abade acabou falecendo naquela mesma semana. E mais uma
fotografia perdida no tempo levou o seu nome, ajudando a tecer uma parcela da
posteridade que ele merecia...