Laura Maia, Quadra D, 277
Conto Vencedor do XXV Concurso de Contos da Biblioteca Municipal de Aparecida de 2014
Difícil imaginar que aquele senhor
calvo e silenciado escondesse no tempo o homem truculento que foi o Cabo Moura.
Tinha feito 74 anos e suas lembranças
ainda pesavam como se o acontecido fosse recente.
Ainda assim, mesmo com a velha memória
falhando, ele tentava não esquecer um rosto.
Laura era seu nome. Laura Maia. Pseudônimo
escolhido por Artemis quando vieram morar em Aparecida, em 1966, quando saíram
do Rio de Janeiro em meio à turbulência da Ditadura Militar que imperava.
Ela era uma mulher subversiva, metida
com o Partido Comunista e uma ferrenha militante da Frente Ampla, encabeçada
por Carlos Lacerda. Mas se mostrava nitidamente cansada daquela vida. Fugiram
por amor. Um amor impossível naquele tempo.
Artemis a conheceu numa apreensão
rotineira na antiga capital federal. Um apartamento no centro do Rio onde um
grupo rodava em mimeógrafos idéias revolucionárias.
Em meio ao tumulto gerado, ninguém
percebeu os olhares dos dois se cruzando. Foi instantâneo.
Dentro do batalhão do exército é que o
Cabo Moura descobriu a verdadeira identidade da mulher: Camila Marques. Uma
mulher de gênio forte. Emagrecida pelas idas e vindas da clandestinidade. De olheiras
gritantes que contrastavam com um par de olhos esverdeados e um tanto
vermelhos. O grupo era procurado há meses pela polícia e deveria ter o mesmo
fim de outros naquela época.
A fuga foi arquitetada à surdina. Um
suborno na madrugada seguinte fez com que o soldado sentinela deixasse algumas
portas abertas. Logo estavam em um ônibus na Via Dutra sem sentido de culpa
nenhuma na bagagem.
Decidiram então desembarcar em
Aparecida do Norte, numa parada estratégica, onde se hospedaram numa pensão.
Seria provisório até Laura poder descansar um pouco e ele arranjar algum
emprego onde pudesse juntar alguns cruzeiros.
No outro dia bem cedo, Artemis, que a
essas alturas já se chamava “Joaquim
Guerra”, com novos documentos, saiu para procurar algum serviço.
Laura dormiu o dia todo no quarto da
pensão. Dormiu como há muito tempo não dormia.
Foi acordada pelo amante sussurrando
em seus ouvidos:
-Acorda
querida. Tenho novidades. Consegui um emprego...
Alguns dias depois conseguiram alugar
um quarto no Bairro da Ponte Alta, gentilmente cedido por uma senhora viúva que
vivia de aluguéis deste tipo. Ali, os dois conheceram a felicidade...
Em um mês, Artemis, vulgo Joaquim
Guerra, já tinha se estabelecido como ajudante gráfico de um patrão bondoso. Foi
no mesmo tempo em que Laura caiu doente. Tudo fruto das fugas e da vida que
levava e a privava de muita coisa. De noites sem dormir, sem comer. De cigarros
tidos como aliados ante o devasto ato que foi a perseguição do regime militar
em sua vida e na história em si.
Artemis a encontrou caída. Procurou
rapidamente a proteger colocando-a novamente em seu leito e foi em busca de um
farmacêutico dali. Desenganada por ele, Laura Maia, ou, Camila Marques veio a
falecer na manhã seguinte.
O patrão de Artemis ainda teve piedade
e cedeu um lugar em dos jazigos da família que ficava no cemitério Santa Rita
para que o corpo de Laura pudesse enfim descansar depois de tanta luta.
Foi triste a cena inglória da mulher descendo
a terra. Soou como uma derrota.
O olhar de Artemis perdia-se ao longe.
Um discurso silencioso dilacerava seu peito. Ele ficou estático e só foi jogar uma
rosa que trouxera para a amada quando o coveiro veio avisar que já estava na
hora de fechar o santo lugar. O sol caía lentamente desenhando sombras
improváveis entre as sepulturas.
Retomar sua vida clandestina quase
perdeu o sentido. Isso se agravou intensamente quando ele se lembrou de que não
havia guardado nenhuma fotografia de Laura. Imbuído de escondê-la em meio ao
perigo eminente da perseguição, queimaram todos os documentos falsos que ela
sempre carregava. Por quantas vezes, o casal passou perto de um retratista
lambe-lambe na Praça Nossa Senhora Aparecida e somente ensaiava uma pose. Um
retrato que nunca se revelou.
Artemis foi logo arrumando um jeito de
tocar a vida. Mudou-se da Ponte Alta e conseguiu alugar três cômodos na Santa
Rita, bem mais próximos do cemitério que ele passou a visitar com freqüência. Ele
se trancou na vida de uma maneira que seu itinerário era sua casa, o cemitério,
o trabalho, o cemitério outra vez, quando dava tempo de achá-lo aberto, e sua
casa de novo, para embrenhar-se numa profunda solidão.
Foi um tempo de amargura e de
arrependimentos, principalmente das suas atrocidades cometidas no Rio de
Janeiro, onde torturou, matou e ocultou muita gente. Insuportável fardo na
consciência que pesou ainda mais quando conviveu e conheceu, mesmo que por
pouco tempo, sua querida Laura. Os motivos e ideologias que a motivou ser quem
foi.
O tempo havia sido cruel com ele. Artemis
ficou sozinho a vida toda, atormentado pelas lembranças e traumas. Era o
Joaquim Guerra que nunca conseguiu se libertar do Cabo Artemis Moura. Sua
falsidade ideológica se perdeu e assim ele fez de tudo um pouco na vida, até se
aposentar como vigia. Arrastava-se com uma mísera aposentadoria.
Vez ou outra acordava em meio à
madrugada molhado em suor e assustado. Fixava a lembrança no semblante de
Laura. Isso lhe confortava por alguns instantes. Mas logo os aspectos sinistros
daquele seu passado vinham à tona. E pra piorar, faltava ainda o retrato de
Laura, pois suas velhas lembranças iam cada vez mais tomando um eixo
esbranquiçado na memória.
Certo dia, numa padaria do bairro, vendo
o noticiário na TV, se deu conta de que poderia enfim rever o rosto de Laura. Com
o coração palpitando forte, ele se deteve na manchete sobre as ações que uma “Comissão
da Verdade” estava fazendo para solucionar casos de desaparecidos políticos no
Brasil. Isso caiu como uma bomba sobre ele que sempre foi avesso a assistir
televisão ou ouvir rádio e que vivia mesmo de certa forma isolado do mundo.
Por intermédio de um vizinho ele soube
da existência da Internet. Uma ferramenta de busca que poderia enfim libertá-lo
daquele pesadelo que já duravam 50 anos.
O amigo se propôs a ajudá-lo e
procurar no banco de dados alguma informação da pessoa, mas sem saber sobre a
verdadeira história daquela busca. Foi
então que ele escreveu num papel o nome “Camila
Marques, desaparecida em 1966 no Rio de Janeiro” e entregou ao vizinho.
Voltou pra casa esperançoso. Mal cabia
naquela alegria adormecida há tempos.
Sua angústia teve fim quando numa
manhã seu vizinho chega a sua casa com certa pressa e lhe entrega um envelope:
-Seu
Joaquim, acho que dentro deste envelope talvez esteja aquilo que o senhor
procura...
Ele se sentou pra ter certeza de que
não tombaria ante aquilo que seus olhos poderiam enxergar.
Impresso em folha simples, lá estava o
rosto que ele quase esqueceu: Era Laura, numa fotografia ampliada de um 3x4
provavelmente tirada antes do envolvimento dela com a guerrilha. Tinha uma tez
clara, um semblante alegre e límpido, parecendo filha da burguesia carioca do
fim dos anos 50. Foi então que ele chorou copiosamente...
Mas foi um choro que teve também um
teor derradeiro. Logo ele abriu um sorriso. Antes, ele pensava que
desencarnaria deste plano sem ver novamente aquele rosto que o cativara e que o
levara a cometer o ato mais corajoso que teve: o de desertar de sua carreira
militar por amor.
O que ele não esperava era que, dentro
do envelope, também vinha junto alguns dados de outra pessoa cujos traços do
semblante não eram estranhos. Uma ficha quase completa de alguém chamado “Dr.
Ricardo Marques”, delegado de polícia.
Pelo que Artemis pôde entender, Dr.
Ricardo Marques era irmão de Camila Marques, sua Laura, que se desdobrava há
anos na procura da sua irmã subversiva. Constatou também que vinha junto um
endereço e o telefone descortinando os contatos para quem pudesse dar alguma
pista que levasse ao paradeiro da desaparecida política Camila Marques.
O sono daquela noite foi diferente das
demais. Sono garimpado a 50 anos de angústia. Dormiu mesmo agarrado na fotografia.
Era enfim a prova mais que concreta de que não tinha vivido um sonho, mas um
amor que ultrapassou décadas.
No outro dia bem cedo não tardou tomar
o rumo à Praça de São Benedito, no centro da cidade. Isso, não antes de
adentrar o velho cemitério Santa Rita.
O diálogo atemporal entre os dois foi
rápido como o vento que soprava aquela manhã fria:
-Minha
querida, trouxe enfim seu retrato!
Afagando o túmulo caiado e poeirento
como se afagasse seus cabelos, ele se despediu. Tinha que tirar cópias daquela
fotografia. E assim ele o fez...
Na volta, teve o trabalho de amarrar
na cruz do túmulo a moldura em que colocou a foto. Transpassou o arame de
“leste a oeste” daquela eternidade. O quadro ficou bem um pouco acima do nome
pintado numa pequena placa. Com outra cópia ele fez um porta retrato e colocou
sobre o criado mudo, ao lado da cama.
Depois deste longo e cansativo dia,
Artemis não voltou mais ao cemitério.
Achava que Laura precisava enfim descansar, mas desta vez com um rosto. O
seu rosto quase esquecido.
Neste dia ele também havia comprado
alguns envelopes. Doeu dentro si a incansável busca do irmão de Laura nesses
quase 50 anos. Com certeza seus pais se esvaíram nessa angústia de não saber
onde estava a filha.
Sentado-se à mesa da cozinha, escreveu
no envelope, com todo cuidado e uma grafia impecável, o endereço do Dr. Ricardo
Marques. No remetente escreveu “Laura
Maia”...
Na Capital Paulista, depois de alguns
dias, o serviço dos correios deixou na recepção da seccional, entre outras
cartas, o envelope enviado por Artemis. O investigador de plantão, como de
costume, deixou tudo na mesa do Dr. Ricardo.
Dentro daquele distinto envelope havia
uma folha onde se podiam ler, entre outras palavras, as coordenadas de onde os
restos mortais de Camila Marques se encontravam:
“Sua
irmã, Camila Marques acabou virando, em 1966, Laura Maia. Hoje ela repousa no Cemitério
Santa Rita, Quadra D, 277 em Aparecida, SP”...
O trabalho da polícia científica
começou logo pela manhã de uma segunda-feira ensolarada, movimentando o cemitério.
Numa quadra ao lado, fingindo rezar em
um túmulo, estava Artemis, que voltou a frequentar o lugar depois de ter
enviado a carta ao delegado. Acompanhava a ação dos peritos disfarçadamente.
Ele reconheceu o delegado que
observava tudo atentamente, fumando um cigarro atrás do outro.
Mas Artemis não quis ver o final
daquilo tudo. Não aguentaria outra despedida.
Foi então que ele se retirou sorrateiramente
pelas alamedas silenciosas do velho cemitério Santa Rita pra nunca mais
voltar...