“Legal,legal!”
Havia alguma coisa rara naquele homem decorado por Deus com uma voz insuperável, ancorado numa esquina da história aparecidense.
Ao encontrá-lo, Vítor Prado parecia-me uma espécie de “embaixada” onde eu depositava a minha utopia em ser escritor. No esquecimento da impossibilidade, logo eu era encoberto por um leve sabor de realidade que estava prestes a ser mudada numa tomada nova da vida, flutuando no espaço tempo. Ele tinha o dom de retirar da gente o medo de acreditar. Foi assim desde quando morou ali na Rua Floriano Peixoto onde o que nos igualava era a torcida pelo time do povo. Um sobrenome comum entre milhões e entre eu e ele: “corinthiano”. Devido a amizades assim é que a gente aprende que não precisa ser brilhante todos os dias nem que cada crônica venha beirar o inesquecível na pretensão de ser publicada.
Algumas folhas de jornal embaixo do braço mostrava como ele era bem informado.
Uma palavra entoada contemplando o acaso e a velha mania em nunca gostar de me chamar pelo nome. Eu não era eu. Eu era sempre o “Santa Rita”, desde a nossa época de jogo de palito no Bar do Ditão lá na Ponte Alta. Uma conversa gostosa digna de um “lord” com um timbre inigualável.
Ele era um ícone que tinha de ser preservado ao invés de ser engolido pelo tempo.
Mas o essencial de se viver é isso. É ficar driblando essa mórbida e infinita ausência até quando o supremo criador de tudo nos propor um descanso para voltar depois de algum tempo com baterias renovadas de vida.
Pois ele viveu. Engajado nos microfones das rádios Monumental, Aparecida e Piratiniga ou mesmo depois ali, aposentado, sonhando em voltar a ser radialista. Tinha uma efervescência diante da boemia saudosa traçada desde sua casa, passando pelo Armazém do Zé na Rua Barão do Rio Branco, pela Toca do Tatu e pela cadeira cativa no Bar do Zé Maria. “Naquela mesa”, aos domingos, a cadeira vai estar vazia. Uma atmosfera pesada de certa forma vai envolver todos os pensamentos dali. Isso é saudade.
Mas algo ainda transcendeu uma certa luz como nos retratos onde ele está radiante.
Varrendo alguns cds e a memória do meu velho computador, achei uma gravação épica feita por um já obsoleto MP3 há uns dois anos atrás. Foi quando numa manhã eu o encontrei sentado esperando o ônibus no ponto final da Santa Rita. Sem ele preceber, comecei a gravar a nossa conversa que foi desde elogios pelas minhas crônicas até uma história da década de 50 em que ele dizia com certo saudosismo que, devido aos encrenqueiros do Alto da Candonga “não era qualquer um que podia circular pela Santa Rita nem namorar as multadas que lá moravam”, que segundo ele, eram as mais “belas, pernudas e cobiçadas da cidade”. Tudo da forma mais sublime sem deixar que a incomparável voz soasse introspectiva. A voz tinha de ser como sempre foi, forte e requerendo daquele encontro partículas da realidade para que tudo ficasse inesquecível sem que o tempo se embrenhasse num desengano.
Avistando o “Pássaro Marron” passando em frente a Rua Vicente Pasin, ele agradeceu pelo abraço que eu tinha lhe mandado num texto publicado há algum tempo atrás. Se benzeu em frente ao portão do cemitério e acenou pra alguém conhecido que passava do outro lado da rua: “legal, legal”.
A chegada rápida do ônibus no ponto final foi a reticência.
Mas a voz ainda ficou guardada no peito e na memória do meu computador.
Um registro histórico onde silêncio algum será capaz de superar um dia.
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